Muito comuns no cotidiano escolar, as atitudes agressivas devem ser acompanhadas de perto pelos educadores para que aqueles que agridem encontrem outras maneiras de manifestar suas vontades e os agredidos se envolvam na situação e se defendam
O tema mordida, na primeira infância (até 3 anos), desperta nos cuidadores inúmeros sentimentos por envolver uma série de desafios e de conquistas. A criança, nesse momento, é apresentada ao mundo e, na instituição escolar, vai viver coletivamente pela primeira vez. Cabe ao educador introduzi-la na vida em grupo e guiá-la na forma de se relacionar e se comunicar com seus pares. A tarefa está repleta de obstáculos. Os pequenos trazem características que amadurecem a partir da interferência com o meio social e que permitirão ampliar o potencial para se relacionar com outros da mesma faixa etária etária, estimulados por estarem em uma escola de Educação Infantil. Oferecer um espaço favorável ao desenvolvimento deles é responsabilidade do educador e, para isso, se faz ne cessário o conhecimento das características dessa faixa etária, assim como um repertório variado de atividades, como mostra o relato a seguir da professora Zita de Barros Garcia:
As mordidas estão presentes cotidianamente no nosso trabalho com crianças de 1 a 3 anos. Pode parecer estranho, mas, de algum modo, temos de nos conformar com essa premissa, bem como nos acostumar com ela, por mais difícil que seja a tarefa. Porém, isso não quer dizer que não há o que fazer em relação ao tema. Pelo contrário, ao perguntarmos a qualquer professor sobre as dificuldades que ele tem de enfrentar no seu dia a dia, que o deixam nervoso, cansado e desanimado, ele responderá que uma parte delas diz respeito às manifestações de agressividade, como os empurrões, apertões, chutes e, é claro, as mordidas. Essas são as mais difíceis de lidar, porque, além do desgaste que provocam em todos no momento em que ocorrem, ainda são perpetuadas, pois ficam marcas – e bem evidentes.
Quando vemos uma criança ser mordida, temos de lidar com uma série de sentimentos que a cena nos suscita. Ficamos, primeiramente, muito chateados com a situação. Também somos tomados por uma sensação de arrependimento, como se pudéssemos ter feito algo para impedir que o incidente ocorresse. Podemos ficar com raiva, bravos, inconformados, com receio de dar a notícia aos pais etc. Esses sentimentos se intensificam quando, por exemplo, alguma criança que já foi mordida outras vezes recebe uma nova agressão. Como lidamos com a situação e com as nossas emoções? O que nos conforta é que essas situações não vêm sozinhas. São acompanhadas por um saber que nos tranquiliza. Assim, acabamos sabendo lidar com elas. O conhecimento vem não só de embasamento teórico, mas, também e, principalmente, de nossa prática, de uma vivência cotidiana com os pequenos. Isso nos dá confiança para cuidarmos das diferentes situações, para assumirmos nossas ações e para ajudarmos as crianças e os pais a lidar com as mordidas.
A compreensão de que esse tipo de agressão faz parte do desenvolvimento infantil está presente em todos nós e tem importância fundamental na nossa sobrevivência, pois nos coloca em uma posição de saber e, consequentemente, de agir. Primeiro, é importante ressaltar que não há regras. Cada caso é um caso. Pensamos na situação que desencadeou a mordida e avaliamos o que pode ser feito para que a situação possa ser evitada. Pensamos na criança que mordeu e na que foi mordida: quem são elas? Cuidamos dos dois lados, pois ambas necessitam de ajuda. Auxiliamos a agressora a encontrar outras maneiras de manifestar suas vontades. Ajudamos a agredida a encontrar outras maneiras de se posicionar e se defender, envolvendo-a também na situação. Geralmente, relatamos aos pais da vítima a cena em que tudo ocorreu, mas, não necessariamente, divulgamos o nome do mordedor, uma vez que essa informação, na maioria dos casos, é a que tem menos relevância.
Ao mesmo tempo, temos a preocupação de não expor ninguém à toa. Trata-se de uma série de ações que temos de tomar para cuidar dessa situação tão dolorida para muitos e, ao mesmo tempo, tão comum no cotidiano escolar. Por mais que enfrentemos essa situação muitas vezes, cada mordida irá repercutir diferentemente em todos nós e, por isso, não há caminho certeiro a seguir. Deve haver bom senso, sensibilidade, compreensão e cuidado para darmos conta da situação. Essa reflexão pode ser compreendida de maneira exemplar com o caso de uma menina, que chamarei aqui de Ana. Ela era uma das mais novas do grupo, um encanto, e conquistava quem a visse. Certo dia, levou uma dentada.
Depois de uma semana levou mais uma e, três dias depois, outra. No fim do mês, o pai quis falar comigo na porta da sala. Muito bravo e, com todo o direito, veio tirar satisfação. Queria saber o que estava acontecendo para que sua filha voltasse marcada para casa tantas vezes. Entendia seu nervosismo e sua intolerância diante daquela situação, mas, ao mesmo tempo, tinha um conhecimento que ele não possuía. Eu sabia o que acontecia com aquela criança no cotidiano escolar. Ana era muito esperta, viva e se atirava nas situações sem nenhum receio. Características muito importantes e, a meu ver, até certo ponto, saudáveis para uma criança em desenvolvimento. Porém, seu jeito trazia alguns efeitos colaterais, os quais sabia que era de minha responsabilidade cuidar. Ela subia no brinquedão, por exemplo, sem medo nenhum e, muitas vezes, queria escorregar de modo perigoso sem se ater ao risco que corria. Nessas situações, eu estava sempre ao seu lado para, primeiro, garantir que ela não se machucasse e, segundo, para mostrar a ela que teria de ter cuidado e, assim, ajudá-la a enxergar que nossas ações trazem consequências. Dessa maneira, eu estaria ajudando-a também a reconhecer aquelas atitudes que são perigosas e as que não são. A situação do brinquedão era clara. Sabia exatamente o que e como fazer para que nenhum incidente ocorresse. Entretanto, nem todas as outras crianças apresentavam a mesma clareza. Ela gostava muito de brincar com os colegas e os procurava com frequência. Estava aprendendo a se relacionar com eles. Muitas vezes, gostava de provocá-los para ver suas reações. Mas ela começou a procurar sempre um menino da sala ao lado e ele correspondeu à sua aproximação. Os dois passaram a estar sempre juntos, procuravam-se o tempo todo e não queriam se desgrudar. Ele começou, então, a morder a amiga e, em vez de ela querer permanecer longe do mordedor ou até mesmo ficar com medo dele – o que muitas vezes acontece –, procurava-o ainda mais. Com as outras crianças, muitas vezes, comportava-se do mesmo modo. Portanto, podemos pensar que ela não era apenas uma vítima das situações porque tinha uma certa responsabilidade (ou irresponsabilidade) diante do que acontecia.
A partir dessa reflexão, o meu trabalho era, além de cuidar das situações para que elas não mais ocorressem, fazer com que essa garotinha se desse conta das consequências de suas ações e, dessa maneira, pudesse encontrar outra maneira de se posicionar em relação ao outro e ao mundo. Um modo que fosse menos nocivo para ela. Diante do contexto, havia coisas que eu tinha a obrigação de evitar; outras, ela teria de aprender. Depois de uma hora de conversa na porta da sala com o pai, ele me fez a exigência de que sua filha não recebesse mais nenhuma mordida ou arranhão. Expliquei que não mediria esforços para que seus pedidos fossem atendidos, mas que eu não poderia dar cem por cento de certeza em relação a esse assunto, a não ser que eu a privasse de qualquer contato com outra criança, fato que, aí sim, seria prejudicial à menina. Ofereci a opção de uma reunião comigo ou com a coordenação para discutir melhor o assunto, se ele sentisse necessidade. O pai continuou irredutível e me respondeu dizendo que não aceitaria mais nenhuma ocorrência do tipo e que não havia mais o que discutir, encerrando a conversa. Fiquei tensa e nervosa, mas sabia que estava cuidando da melhor maneira da situação e esperava, de algum jeito, ter conseguido transmitir isso para o responsável.
Algumas semanas se passaram e, no dia da reunião de pais, Ana foi arranhada. Então pensei: “Estou perdida! Justo hoje! Esse pai vai me fuzilar!”. Mas foi exatamente ao contrário. Ao fim do encontro, ele me agradeceu e disse que agora se dava conta do meu amor pelo meu trabalho e da seriedade com que eu o realizava. Ele, então, se tranquilizou e, aos poucos, Ana foi percebendo outras maneiras de se envolver com os amigos e de se proteger deles sem perder a espontaneidade e a coragem. Acredito que, por meio de muita conversa e reflexão, tanto eu, professora, quanto o pai pudemos suportar (e entender) as mordidas que Ana recebeu e ajudá-la, assim, a reconhecer a agressividade do outro e dela, assim como a lidar com esse sentimento.
O que diz Winnicott
Diferentes teóricos e pesquisadores sobre desenvolvimento abordam a questão da agressividade infantil. Entre eles, destaco o pediatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971)1, por sua abordagem centrada nas relações sociais e culturais. Segundo ele, cada ser humano traz potencial inato para amadurecer e se integrar. Porém, o fato de essa tendência ser inata não garante que ela realmente ocorra. Isso dependerá de um ambiente facilitador que forneça cuidados suficientemente bons, e, no início, ele é representado pela mãe ou pelo cuidador. É importante ressaltar, por um lado, que esses cuidados dependem da necessidade de cada ser humano, que responderá ao ambiente de maneira própria, apresentando, a cada momento, condições, potencialidades e dificuldades diversas. “Amor e ódio constituem os dois principais elementos a partir dos quais se constroem as relações humanas. Mas amor e ódio envolvem agressividade. Por outro, a agressão pode ser um sintoma de medo”, dizia Winnicott. “De todas as tendências humanas, a agressividade, em especial, é escondida, disfarçada, desviada, atribuída a agentes externos, e quando se manifesta é sempre uma tarefa difícil identificar suas origens.”2 A partir da agressividade, é possível:
- alimentar-se e reproduzir-se;
- buscar conhecimento;
- desenvolver-se.
Nos aspectos citados anteriormente, a agressividade é o que impulsiona o ser humano a crescer!
De onde vem essa necessidade?
A raiz da manifestação da agressividade é sempre originária de energias mal direcionadas? Segundo os estudos de Winnicott, “(…) O que logo será comportamento agressivo não passa, no início, de um simples impulso que leva a um movimento e aos primeiros passos de uma exploração. A agressão está sempre ligada, dessa maneira, ao estabelecimento de uma distinção entre o que é e o que não é o eu”3:
- a mordida é um comportamento esperado em crianças na faixa dos 2 anos;
- sem dúvida, é uma manifestação agressiva;
- agressão que machuca e intimida, porém, pode ser entendida também como uma ação de exploração, reconhecimento e experimentação.
Ao derrubar uma torre de blocos, rasgar papéis ou espirrar água durante o banho, os pequenos têm a oportunidade de expressar a própria força e seu impulso agressivo. Nessas ocasiões, eles podem vivenciar internamente fantasias de destruição, porém essas manifestações, por serem aceitas socialmente, não trazem consequências e permitem que eles exprimam de maneira organizada conteúdos de suas fantasias agressivas. Ao oferecermos às crianças situações em que a agressividade pode ser manifestada em condições favoráveis, permitimos que não se desorganizem emocionalmente, pois mantemos a integridade delas e do ambiente. A vivência de uma frustração ou raiva pode desencadear reações controláveis ou descontroláveis, dependendo do nível interno de tensões existentes na fantasia inconsciente.
O adulto tem o papel primordial de impedir que a agressividade fuja ao controle, garantindo, entretanto, que ela possa ser expressa sem causar danos à própria criança e ao seu ambiente. Ao aceitarmos esse comportamento e lhe dar sentido, devolvendo para a criança a possibilidade de reparação e restituição do controle, contribuímos para a constituição de um ser produtivo e consciente.
Papel da instituição
O repertório dos educadores se enriquecerá à medida que, ao cuidar das crianças, investir na qualidade da interação, que se apóia na possibilidade de oferecer um ambiente organizado, atenção individualizada e riqueza nas propostas. O investimento afetivo que destinamos nas diferentes atividades irá confirmar para a criança o lugar que ela ocupa na instituição, sua importância e o direito de ser atendida em suas necessidades. Demonstramos afeto ao oferecermos um material adequado e ao fazermos o planejamento com antecedência. A aprendizagem é movida pelo afeto, pela identificação da criança com seu educador. A construção das práticas sociais é feita diariamente, em uma construção demorada e repetitiva, que a levará a dar sentido aos significados de sua cultura.
Frequentemente, uma produção mais lenta ou sem envolvimento por parte das crianças é interpretada como uma dificuldade de ordem cognitiva. Porém, elas precisam estar organizadas emocionalmente para produzir. Conhecer cada uma, sua história e o momento que está vivendo são ferramentas úteis ao educador para interagir com o grupo e estimulá-lo, conhecendo os limites e as potencialidades individuais. O bebê utiliza seu próprio corpo para aprender. Para que isso aconteça, é necessário que ele esteja em harmonia consigo e com o ambiente, o que proporciona que sua atenção se volte para a exploração de seus movimentos, reconhecendo suas des trezas e exercitando a coordenação motora. As brincadeiras e interações com os adultos favorecem o desenvolvimento de expressões e códigos de comunicação. Por meio de atividades de relaxamento, do brincar e da alimentação, a criança adquire os símbolos e os significados da estrutura de comunicação de seu meio.
Uma instituição com rotina e estrutura que atenda à infância favorece a autonomia e permite o movimento de reconhecimento desse ambiente. Isso ocorre pela possibilidade de familiarização com o espaço. As crianças se sentem seguras para investir nas relações com os adultos e os colegas. O adulto pode estar presente. Porém nem sempre sua atuação irá se dar diretamente. A criança precisa do apoio de seu cuidador e também descobrir suas possibilidades em um movimento mais solitário (de vez em quando). Para que isso ocorra com segurança, os espaços carecem dos cuidados de um educador que valorize a sua organização e estrutura. A ausência dele pode gerar sentimento de desamparo nos pequenos. As situações novas precisam ser introduzidas pelo cuidador de referência, caso contrário podem ocasionar comportamentos gerados pela tensão e impulsividade. É possível que essas atitudes desorganizadas sejam frequentes caso não esteja assegurado o bem-estar. A criança ainda se comunica com dificuldade, em geral não é entendida pelo adulto e é frequente que se sinta frustrada. Uma rotina bem estruturada e atividades sequenciadas em que a criança possa antecipar o que está por vir são fatores que favorecem o domínio sobre o ambiente, amenizando o sentimento de frustração.
(Denise Argolo Estill, psicóloga e psicopedagoga. Atua em consultório particular, com atendimento psicológico e orientação familiar, e é tesoureira do Instituto Avisa Lá, em São Paulo-SP). Também é membro efetivo do Entre Laços – Núcleo de Atenção à Primeira Infância! e Zita de Barros Garcia, é professora de Educação Infantil da Escola Viva, em São Paulo-SP).
1Donald Woods Winnicott (1896-1971) trabalhou no Paddington Green Children´s Hospital, em Londres (Inglaterra), e foi presidente da Sociedade Britânica de Psicanálise. Durante a Segunda Guerra Mundial, trabalhou como consultor psiquiátrico no tratamento de crianças mentalmente transtornadas e de suas mães, o que lhe permitiu elaborar a maioria de suas originais teorias.
2Privação e delinquência, de Donald Woods Winnicott, cap.10 – Raízes da agressão.
3Idem
Mordidas, arranhões, e m purrões e tapas
Em relação aos enfrentamentos que ocorrem com as crianças, confortá-las, cuidar das lesões e dos sentimentos, dar a notícia para a família, todos esses aspectos envolvem cobranças pessoais e de terceiros (pais indignados e situações de confronto, por exemplo). O professor e a coordenação são chamados a responder por tudo isso. Como enfrentar tantas animosidades estando-se frágil e impotente? Até onde vai a responsabilidade da instituição? Como um profissional, sentindo-se tão desconfortável, pode dar continuidade ao trabalho, garantindo às crianças a segurança e a autoridade de que elas tanto precisam? Como manter a boa relação com as famílias, estimulando a participação no dia a dia da instituição? O que a escola pode fazer para intervir e minimizar essa situação?
- Incentivar atitudes de prevenção, como uma atenção redobrada no sentido de impedir situações que levem a criança a se machucar, agredir ou ser agredida por um colega.
- A presença de um adulto perto dos pequenos deve ser constante. Eles se desorganizam muito rápido quando se percebem sozinhos.
- Aceitar a existência de conflitos entre as crianças como uma característica natural da idade;
- Estimular, por meio de um modelo de intervenção, formas verbais de resolução do conflito.
- Valorizar a diversidade de linguagens – gestos, palavras, sons, desenhos, escrita – como instrumentos para a criança pensar o mundo e em si.
- Lembrar que as brincadeiras são poderosas ferramentas para expressão e organização do mundo interno.
- Reservar longos períodos diários para o brincar.
Ficha técnica
Denise Argolo Estill
Email: deniseae@globo.com
Entre Laços – Núcleo de Atenção à Primeira Infância!
Site: www.entrelacos.org.br
Escola Viva
Endereço: Rua Prof. Vahia de Abreu, 664 – Vila Olímpia – São Paulo – SP – CEP 04549-003 – Tel.: (11) 3040-2250 – Site: www.escolaviva.com.br
Professora: Zita de Barros Garcia
Email: zitagarcia@yahoo.com.br
Para saber mais
Livros
- Coleção Proinfantil – módulo II, unidade 2, livro de estudos vol. 2, de Karina R. Lopes, Roseana P. Mendes e Vitória L. B. Faria (orgs.). MEC. Secretaria de Educação Básica e Secretaria de Educação a Distância. Disponível em: http//portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf/mod_iv_vol2unid6.pdf
- Privação e delinquência, de Donald Woods Winnicott. Ed. Martins Fontes. São Paulo. Tel.: (11) 3082-8042.
- Seis estudos de psicologia, de Jean Piaget. Ed. Forense Universitária. Rio de Janeiro. Tel.: (21) 2516-2581.
- Sexualidade infantil, de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, vol. VII. Ed. Imago. Rio de Janeiro. Tel.: (21) 2242-0627.