Que espaço é esse?¹

LUANA MARRA, CAROLINA CHERUBINI S. HONORATO E CAMILLA SCHIAVO RITZMANN²


AS APRENDIZAGENS ESPACIAIS TÊM INÍCIO NOS PRIMEIROS MOVIMENTOS QUE AS CRIANÇAS FAZEM E PERMANECEM POR TODA A VIDA, A PARTIR DE AÇÕES E INTERAÇÕES QUE ELAS MANTÊM COM PESSOAS, LUGARES E OBJETOS


Que espaço é esse? Aonde vai dar? Por onde precisamos passar para chegar até ele? Essas são perguntas presentes no cotidiano de todas as pessoas. Desde muito cedo, percebemo-nos inseridos nos mais variados espaços, seja em casa, na escola, no clube ou em qualquer outro lugar. Locais que fazem parte de nossa rotina e muitas vezes são pouco explorados e conhecidos por nós. Quem é que nunca errou um
caminho? Quantas pessoas são incapazes de realizar um pequeno retorno, tampouco conseguem ler um mapa? Isso pode ocorrer graças à falta de conhecimento sobre os espaços e sobre a localização de objetos e de nós mesmos nesses locais.

Em um capítulo dedicado à importância da localização espacial na Educação Infantil nas séries iniciais, Saiz³ mostra-nos que os conhecimentos sobre os espaços não são espontâneos nem naturais e, para se apropriar deles, é preciso pensar e refletir sobre as relações entre espaço e forma, para, a partir disso, atribuir sentido a essas aprendizagens:

Isso indica que a aquisição espontânea desses conhecimentos não é sufi ciente em muitos casos e que talvez fosse necessário que a instituição escolar assumisse entre suas responsabilidades a de instrumentalizar situações nas quais as crianças e os jovens pudessem articular o desenvolvimento espontâneo das noções espaciais com a aquisição de conhecimentos escolares necessários para a vida em sociedade e para as aprendizagens matemáticas ou profissionais posteriores.

Considerando que as aprendizagens espaciais se iniciam nas primeiras experiências da criança, planejamos para os estudantes do T54um estudo específico5 na área da Matemática.


1 Trata-se de um relatório reflexivo, isto é, um documento produzido pela equipe docente, individualmente ou em parceria (entre professores do mesmo ano escolar e/ou com a coordenação pedagógica), com o objetivo de refletir sobre a prática, buscando, dessa forma, validá-la e ressignificá-la.
2 Luana Marra e Carolina Cherubini S. Honorato são professoras da Escola Santi, localizada em São Paulo (SP). Camilla Schiavo Ritzmann foi coordenadora pedagógica da Escola Santi e é consultora dos programas Além dos Números e Formar em Rede Matemática pelo Instituto Avisa Lá.
3 À direita… de quem? Localização espacial na Educação Infantil e nas séries iniciais, de Irma Elena Saiz. In: Ensinar matemática na educação infantil e nas séries iniciais: análise e proposta, de Mabel Panizza e colaboradores. Porto Alegre: Artmed, 2006.

Espaço e Forma

É fato que as crianças de 5 anos já possuem conhecimentos bastante significativos em relação aos espaços que frequentam, como a própria casa, a sala de aula ou o pátio da escola, pois interagem diariamente com eles e com os objetos e pessoas que nele circulam ou dele fazem parte. Sabemos também que, “ao explorar objetos e ambientes variados, a criança vai montando uma representação do espaço e aprende a se orientar por pontos de referência”.6No entanto, muitas vezes não interagem verdadeiramente com esses espaços, pois apenas os utilizam sem refletir sobre as relações que eles mantêm com os objetos. Conhecem os espaços mas ainda não conseguem se localizar ou encontrar objetos com autonomia.

Considerando a importância de tais aprendizagens e o desejo de potencializar reflexões e direcionar o olhar das crianças para o espaço e as relações estabelecidas com tudo o que está presente, propusemos a sequência de atividades que denominamos “Construção de circuitos”.

Nosso primeiro grande objetivo com essa sequência foi averiguar o que as crianças sabiam sobre os espaços da escola. Para tanto, sugerimos  que planejassem oralmente um circuito em um espaço escolhido por eles. Esta é uma atividade de movimento muito apreciada pelas crianças, em que utilizamos diferentes espaços e materiais da escola, atrelados à superação de desafios corporais.


4 Grupo de crianças com 5 anos.
5 Inspirado na sequência didática “Circuitos no pátio” apresentada pela Revista Nova Escola, disponível em http://revistaescola.abril.com.br/educacao-infantil/4-a-6-anos/circuitos-patio-428178.shtml
6 As crianças e suas representações de espaço, de Thais Gurgel. Revista Nova Escola – Edição 226/out. 2009.

Circuito versus localização

O espaço escolhido por elas para construírem o primeiro circuito foi o corredor que liga o Brinque dão ao Pátio da Onda7. Inicialmente, embora as crianças tenham se animado com a proposta, percebemos que demonstravam enorme preocupação com o desafio. Combinamos que nós, professoras, registraríamos no papel, por meio do desenho, as informações que elas fossem falando sobre os espaços e os materiais que seriam utilizados (pneus, cordas, bancos, colchonetes). Enquanto registrávamos, elas diziam: “Depois do pneu, vêm as cordas, depois o banco”, buscando seguir à risca o que elas propunham, pois já havíamos explicado que o desafio era dizer exatamente em que espaços estariam localizados os objetos. No entanto, nessa primeira proposta, percebemos que elas pareciam não se importar muito em localizar os objetos escolhidos nesses espaços. Constatamos por meio dessa ação que, na verdade, tinham dúvidas,
pois ainda não compreendiam exatamente como poderiam descrever essa localização.

Após a conversa sobre o planejamento, propusemos que tentassem montar o circuito planejado no papel no espaço escolhido por elas. As crianças ficaram animadíssimas. Dissemos a elas que poderiam consultar o esboço produzido e, assim, prontamente o fizeram, mas, para nossa grande surpresa, entretidos em recolher os materiais necessários, foram enfileirando-os um após o outro, sem se atentarem em ocupar todo o local combinado para o circuito. Percebemos que naquele momento não se preocuparam com a localização dos objetos no espaço, apenas com os materiais propriamente ditos. O circuito começou no ponto de partida combinado, mas não chegou ao espaço onde as crianças haviam planejado que terminasse.


7 Local da escola onde as crianças tomam lanche e brincam na hora do recreio.
8 Grupo de crianças de 3 anos.
O espaço representado

Após essa primeira montagem, apresentamos às crianças algumas imagens do circuito montado por elas e pedimos que as analisassem. A partir disso, problematizamos, questionando-as se o circuito havia ficado exatamente como planejaram no papel. Elas constataram que não. Então lhes explicamos que, para dar certo, elas precisavam pensar
no espaço escolhido e na disposição dos objetos. Demorou um pouco até que conseguissem pensar em bons lugares para os objetos, mas, após a discussão realizada, decidiram que um lugar interessante seria em frente à sala do T38(ao lado da escada da Educação Infantil), na frente dos murais.

Por meio dessas falas, pudemos identificar quanto as representações sobre espaço estavam ganhando em qualidade, pois o lugar escolhido por elas apresentava uma boa disposição (do ponto de vista do espaço) para a montagem do circuito.

A partir dessa etapa, propusemos que elas desenhassem ou relatassem oralmente caminhos necessários para chegar de um local a outro da escola, ou simplesmente que desenhassem alguns espaços. Nos primeiros desenhos realizados, por exemplo, quando propusemos que desenhassem o trajeto do Pátio da Onda até nossa sala, era nítido que elas não percebiam que os locais por onde passavam eram repletos de detalhes importantes (no que se refere aos espaços e às formas), como salas, armários, escada. Contudo, conforme problematizávamos, percebemos que elas começaram a preocupar-se com isso e os desenhos começaram a apresentar mais informações sobre os espaços. Por meio dessas propostas, as crianças passaram a ficar mais atentas aos diferentes locais da escola, realizando observações mais precisas e desenhos a partir de referências estabelecidas. Assim, fi zeram descobertas significativas em relação ao espaço.

Depois dessa etapa, as crianças foram convidadas a planejar e montar seus próprios circuitos. Por meio dos comentários registrados a seguir, é possível perceber novas preocupações em relação ao espaço, assim como o modo como ele é citado revela que importantes conceitos, no que se refere às aprendizagens espaciais, foram apropriados
por elas.

Alguns comentários durante o planejamento do circuito

“Começa no brinquedão, pula nos pneus, pula corda, passa pela mesa e depois cai na piscina de bolinhas.”
“Escada da Educação Infantil. Ah, brinquedão!, piscina de bolinhas, pneu, mesa.”
“Sobe no brinquedão, depois tem os pneus, bancos para pular corda, túnel, aquele colchão, depois vai onde o Fernando dá aula, passa pela piscina de bolinhas, depois mesa (bem perto do prédio novo!), cadeiras para fazer ziguezague, depois passa pelo prédio novo, depois tem bambolês, depois tem a gangorra, vai até a piscina de bolinhas
e outra vez volta para a classe.”

Conclusões

As crianças, tanto quanto os adultos, precisam manejar relações espaciais em sua vida cotidiana, em sua localização ou na busca de objetos ou, mais em geral, na manipulação de objetos, nos deslocamentos em um bairro ou na cidade, mas também em sua própria casa, na construção ou no uso de diversos objetos, nas informações espaciais que demandam ou recebem e ainda nas instruções para realizar atividades etc. Localizar-se no espaço significa também ser capaz de utilizar um vocabulário que permita diferenciar e interpretar informações espaciais9.

É perceptível que, com esse estudo, nossos alunos aprenderam bastante sobre o espaço e ainda passaram a verbalizar os conhecimentos que foram construindo sobre a localização espacial. Conceitos como perto, longe, atrás, em frente, após e ao lado foram sendo conquistados à medida que iam experimentando situações em que precisavam resolver problemas sobre a organização e a disposição de objetos no espaço. Não foi necessário criarmos situações estanques ou descontextualizadas para que assimilassem esses conteúdos. Bastou que aproveitássemos elementos que a própria rotina escolar oferece para discutir com elas conceitos importantes relacionados ao espaço. Acreditamos que essa proposta permitiu que nossas crianças se envolvessem com importantes questões ligadas à localização de objetos e ao enfrentamento de maneiras diferentes para a sua localização em um determinado espaço, além do uso de um vocabulário espacial adequado às descrições que foram convidadas a fazer.

Certamente, localizar-se no espaço e pensar nos objetos que fazem parte dele é um desafio importante, que para nós, adultos, parece extremamente compreensível, mas, para as crianças, demanda muita ação e reflexão, exigindo que elas vivenciem experiências por meio das quais pensem nas questões espaciais e, assim, se apropriem de importantes conhecimentos geométricos.


9 Saiz, 2006.

Espaço e formas geométricas

As crianças, desde que nascem, exploram seu entorno cotidiano construindo, mediante suas ações, um conhecimento espacial particular. Essas primeiras explorações lhes permitem organizar mentalmente esse entorno pelo uso de representações espaciais que atuarão como sistemas de referência para continuar resolvendo os problemas espaciais que se apresentam.

A escola se comprometerá a enriquecer e a ampliar essas aprendizagens propondo atividades para que os alunos avancem em suas representações espaciais e em sistemas de referências pessoais que lhes permitem adequar seus movimentos e suas ações em geral. Trata-se de criar situações nas quais tenham de organizar essas ações a fim de encontrar soluções para problemas relativos a diferentes espaços que envolvem seus conhecimentos de modo a desafiá-los, promovendo, assim, novos conhecimentos. Oferecerá atividades em que os alunos possam, por exemplo, pensar sobre um fato antes de executá-lo. Com essa diversidade de atividades, pretende-se que os alunos construam uma “linguagem espacial das posições e dos deslocamentos, que tomem consciência de fenômenos associados a mudanças de ponto de vista, a elaboração e utilização do espaço-entorno […]”.

Os conteúdos a trabalhar referentes a espaço são: descrição e interpretação da posição de objetos e pessoas;
comunicação e reprodução de trajetos, considerando elementos do entorno como pontos de referência; representação
gráfica de rotas e de trajetos.

[…] a professora deverá incluir em suas unidades didáticas ou projetos, sempre que possível, atividades que desenvolvam os conteúdos do bloco “Espaço” para promover os intercâmbios necessários que gerem reflexão e tomada de consciência das referências espaciais que as crianças utilizam.

Para a compreensão do deslocamento do objeto por parte da criança é necessário estabelecer contextos que
envolvam a possibilidade de imaginar rotas, antecipar ações e modificar o produto em função das ações de seus colegas, comunicar posições com algum objetivo prático. Essa situação pode ser produzida quando as crianças estão
planejando em grupo uma construção com blocos ou caixas, de modo que se possa fazer rodar uma bolinha entre esses blocos, como um labirinto, ou para movimentar carros em pistas.

[…] Cabe assinalar que a repetição das atividades é fundamental para as aquisições antes descritas. De fato, só é possível avaliar os efeitos das aprendizagens realizadas oferecendo variadas formas de colocar à prova essas questões.

Fonte: Diseño Curricular para la Educación Inicial, Niños de 4 y 5 años, Gobierno de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Secretaría de Educación, 2000. (Traduzido e adaptado para fins didáticos.) A versão integral do documento pode ser consultada em: www.buenosaires.gov.ar/areas/educacion/curricula/inicial.php.
Posted in Blog, Revista Avisa lá #56.