O preconceito étnico-racial presente na sociedade pode ser reproduzido na escola ou questionado desde os primeiros contatos com os bebês.
A fantasia de ser um grande herói ou uma linda princesa é uma das mais comuns na infância. Esse sonho, porém, não está disponível para todas as crianças. Quando uma menina negra imagina-se princesa, por exemplo, precisa negar suas características físicas e, ao mesmo tempo, valorizar como ideal outro biótipo: o da pele branca, dos cabelos lisos e do nariz afilado. Não se trata de um caso específico do mundo encantado. Na vida real, as crianças comportam-se e relacionam-se a partir da representação étnico-racial que encontram na sociedade. “Não é uma questão que envolve apenas o negro, mas sim o branco e toda a sociedade. A escola precisa trabalhar para reverter esse cenário”, defende a doutora em educação Lucimar Rosa Dias, consultora do Centro de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert).
Essas mesmas relações de dominação étnico-racial estão presentes nos programas de televisão, nos tipos físicos dos bonecos, nos comentários dos adultos, nas coloridas fotos das revistas. Permeiam ainda todo o universo escolar, incluindo a educação infantil, onde normalmente a criança é vista como ator alheio ao preconceito e à discriminação.
Segundo Lucimar, esse olhar é uma falácia, e a imagem da criança como ingênua silencia o tema, como se ele não existisse, e retarda a busca por soluções. Em sua opinião, é preciso entender que realmente existem conflitos entre as crianças por causa dos seus pertencimentos raciais e que professores fazem escolhas baseadas nas características físicas, tornando mais do que necessária uma intervenção curricular e pedagógica nessa etapa da educação.
Desvantagem
Em conjunto com a equipe do Ceert, Lucimar Dias estudou resultados de pesquisas de mestrado e doutorado sobre relações raciais na faixa de 0 a 6 anos que destacam muitas situações de discriminação envolvendo crianças, professores, profissionais da educação e familiares. “Os estudos apresentam situações que mostram que aquelas que são negras estão em desvantagem, pois são as que mais vivenciam situações desagradáveis em relação às suas características físicas. Por outro lado, as crianças brancas recebem fortes informações de valorização de seu fenótipo”, relata.
Existe, portanto, a inferiorização de um grupo e a supervalorização de outro, o que é rapidamente percebido pelas crianças no ambiente escolar. Para a pesquisadora Antônia Eunice do Nascimento, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), esse fato é herança de um processo de utilização de mão de obra barata e exploração dos colonizadores sobre os colonizados: “Pode-se perceber que existe uma relação muito próxima entre racismo e escravidão, baseada em interesses econômicos e sociais da população branca e europeia, que resultava em poder e superioridade”, explica ela em um artigo.
É na educação infantil que começa a conscientização das diferenças físicas. Nessa fase, as crianças negras começam a aprender sobre rejeição nas intensas relações vividas no espaço de estudo. “Nesse ambiente, a discriminação racial se dá pela aparência. São os atributos físicos os escolhidos pelos discriminadores para depreciar o negro. Em muitos casos, a criança incorpora essa depreciação, evitando sua identidade negra e tudo o que remete a ela”, ressalta a consultora do Ceert.
O trabalho do professor não é fácil, reconhece a especialista, porém é importante pensar na temática como estando inserida no currículo. “Se ele vai trabalhar as cores com a criança, os exemplos ou atividades podem estar relacionados ao tema”, sugere. Uma possibilidade é comparar as cores das flores e dos animais, mostrar a diversidade na natureza e depois passar para a diversidade de biotipos na sala de aula, por exemplo.
Legislação
Os danos gerados pela discriminação, o preconceito e o racismo (entenda a diferença no box da página 42) são conhecidos e reconhecidos pelo Estado, começando pela Constituição Federal, que prevê como currículo obrigatório as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro (art. 242). Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) assegura o direito à igualdade de condições para permanência na escola e para a preservação de valores e identidades, devendo as crianças e os adolescentes estar a salvo de qualquer forma de negligência, discriminação ou tratamento vexatório. Por sua vez, a Lei nº 10.639/2003 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “história e cultura afro-brasileira” e o dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra, além da inserção nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEIs), em 2004, das relações étnico-raciais e do ensino das culturas afro-brasileira e africana.
Contudo, o suporte legal não garante uma mudança efetiva no tratamento das questões raciais no espaço interno aos muros da escola. Os avanços demandam engajamento das gestões escolares, determinação do corpo de professores e muita coragem para romper com a prática histórica de racismo, garantindo uma vivência pautada pelo respeito mútuo.
Segundo a gerente do núcleo da cultura afrobrasileira da Secretaria de Cultura de Recife (PE), não existem técnicas obrigatórias ou específicas para se trabalhar o assunto, e sim uma construção coletiva dos melhores caminhos a serem seguidos. “É preciso haver uma sensibilização para o tema, uma aproximação do professor com o conteúdo. Quanto mais ele se convencer da importância dessa discussão, mais vai procurar formas de superar isso”, explica Claudilene Silva.
Em sua pesquisa de mestrado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Claudilene, hoje doutoranda, estudou a construção da identidade das professoras negras e avalia que o processo de sensibilização é particular e envolve muita reflexão e discussão sobre o assunto. “Há uma dificuldade de se autoidentificar e, quando o educador tem essa dificuldade, ele faz apenas o básico em sala de aula. É preciso trabalhar a identidade da professora antes de pensar em falar da cultura afro-brasileira”, defende a pesquisadora.
Questão legal
Quando o caso de racismo supera o âmbito escolar, deixando de ser uma questão que requer suporte pedagógico ou psicológico, de modo geral deve ser levado para a polícia, por meio da delegacia mais próxima, ou para o conselho específico nas cidades onde houver. O advogado José Antônio Carlos Pimenta, professor da PUC-Minas e fundador da organização não governamental Rede SOS Racismo, explica que o percurso dos episódios criminosos de racismos é árduo: “Sempre há certo constrangimento com o assunto e dificuldade da vítima, que precisa encontrar testemunhas”. O advogado salienta que os instrumentos legais existem, mas seu cumprimento é difícil. “Temos um Poder Judiciário que ainda está contaminado pelo racismo”, afirma. A Rede SOS Racismo é uma das entidades que acolhe e as vítimas de qualquer discriminação, especialmente as de ênfase racial, oferecendo-lhes suporte jurídico.
Manifestações racistas
Claudilene Silva destaca que as manifestações de racismo na educação infantil acontecem em vários âmbitos. Por exemplo, quando a criança tem negado o acesso à cultura afro-brasileira ou no momento em que uma criança se recusa a pegar na mão de outra de pele mais escura. Às vezes, tais manifestações também ocorrem na relação professor-aluno. “A escola não é só o professor. É preciso que a direção e todos os agentes do ambiente participem do processo”, alerta. Por isso, recomenda que a educação das relações raciais e a valorização da cultura afro-brasileira estejam efetivamente integradas às demais disciplinas e constem no planejamento pedagógico continuado: “O trabalho é permanente, e as questões devem ser levantadas cotidianamente com as crianças”.
Bonecas negras
Quando a supervisora da educação infantil da Secretaria Municipal de Educação de Jacareí (SP), Adriana Bertucci, recebeu a tarefa de iniciar uma ação afirmativa de valorização da cultura negra e promoção da igualdade racial, conforme manda a lei, montou uma proposta para ser discutida com os coordenadores das 34 escolas municipais de educação infantil e das 24 creches — quatro municipais e 20 conveniadas.
Além de trabalhar na construção do projeto, promover reuniões e buscar material de suporte didático, surgiu a ideia de povoar as escolas com bonecas e bonecos negros. Esse simples movimento confirmou a importância da reflexão sobre o tema. “Percorri todo o comércio de Jacareí e não achei bonecas negras. Tivemos de mandar fazer!”, conta Adriana.
As bonecas menores foram para as EMEIs, e as maiores foram encaminhadas às creches. “É muito importante que o trabalho seja feito com os bebês, pois eles já percebem as diferenças de tratamento”, explica a supervisora, que relembrando uma das conversas com as professoras das creches: “Comentei que, quando chega um bebê branco e com os olhos claros, ele percorre toda a escola, de braço em braço, e todos querem pegá-lo no colo. Quando chega uma criança negra, ela é tratada com carinho, mas a atenção não é a mesma”. Segundo Adriana, as educadoras concordaram que a atitude era real e que nunca haviam pensado a esse respeito: foi uma surpresa constatarem a existência do racismo em um ato quase imperceptível.
Na Creche Therezinha de Lourdes Vieira Recco, as bonecas multirraciais já estão alterando o cenário, com a criação de um cantinho das bonecas, que circulam de mão em mão. A professora do maternal Sabrina Barbosa afirma que o acesso às bonecas “diferentes” já deixou as crianças mais abertas à diversidade. “Apresentei a elas as bonecas negras, brancas e asiáticas, perguntando se conheciam alguém parecido, e muitas manifestaram interesse em brincar com uma boneca semelhante a elas”, explica. E o ato de ver uma criança interessada em uma boneca leva outra a também querer experimentar, fazendo com que os brinquedos circulem e todos tenham a oportunidade de observar as diferenças, pegar no cabelo, tocar na pele.
Para Lucimar Rosa Dias, do Ceert, a ideia mais importante é apresentar o tema e discutir os conceitos positivos sobre as diferenças. “É na educação infantil que se constrói a diversidade. Nossa luta é para que esse tema seja parte do cotidiano, com uma imagem positiva, que traga referências positivas de cultura, de africanidade”, destaca. Para ela, é desde bebê que se deve trabalhar a aceitação da diversidade. “A forma como se fala com o bebê, os comentários ao tocar seu cabelo, por exemplo, podem transmitir que aquele cabelo é gostoso e bonito ou que é ruim. E o bebê introjeta tal sensação”, alerta a pesquisadora.
Cada conceito em seu lugar
Preconceito — ideia preconcebida sem razão objetiva ou refletida. Por exemplo, pensar que as pessoas negras são pouco afeitas aos estudos e destinadas aos trabalhos manuais.
Discriminação — atitude ou ação que objetiva diferenciar, distinguir ou prejudicar um grupo com base em ideias preconceituosas. Por exemplo, quando uma professora não permite que uma menina negra represente a princesa em uma peça de teatro argumentando que as princesas são brancas.
Racismo — pressuposto de que existem raças superiores e inferiores, do que decorre a opressão de um grupo racial sobre outro, legitimando as desigualdades sociais, econômicas e acadêmicas.
Fonte: Lucimar Rosa Dias.
Um príncipe diferente
Com um casamento fora dos padrões convencionais, a EMEI Guia Lopes, de São Paulo, começou a romper a realidade até então estática de práticas racistas. A boneca-espantalho Sofia, feita pelos alunos para a horta da EMEI, casou-se na escola com um príncipe em uma cerimônia com festa, convidados e tudo a que eles tinham direito. O príncipe, no entanto, não era típico dos contos de fadas: para grande surpresa de toda a escola, Sofia casou-se com um boneco negro, o príncipe africano Azizi Abayomi. “A quebra do estereótipo do príncipe branco e de olhos azuis chocou os alunos e até mesmo muitos pais”, lembra a diretora Cibele Racy.
Onde encontrar material de apoio
Portal do MEC (www.mec.gov.br): diversas publicações, com destaque para o guia Educação Infantil e práticas promotoras da igualdade racial.
Ceert (www.ceert.org.br)
Instituto Avisa Lá — Formação Continuada de Educadores (www.avisala.org.br)
Rede SOS Racismo (redesosracismo.blogspot.com.br)
Quando o príncipe chegou à escola, detalha a diretora, as professoras perguntaram aos alunos se Sofia e ele poderiam casar, o que gerou uma séria de frases racistas por parte das crianças. “Não podem casar”, diziam. “Um preto não pode casar com uma branca”. Pediu-se, então, que trouxessem fotos dos casamentos dos pais e familiares. “Eles perceberam que há vários casais formados por pessoas brancas e negras. A partir de então, começaram a aceitar a ideia do casamento de Sofia com Azizi”. Os comentários continuaram quando, no trabalho sobre afrodescendência, surgiu a seguinte dúvida: como seriam os pais dos noivos?
— A mãe do Azizi é loira, porque preto só gosta de loira.
— Então como ele nasceu preto?
— Pintaram ele de preto.
Foram então trabalhados vários aspectos da história da África, estabelecendo-se um paralelo com a cultura brasileira. “Trouxemos um autor de contos africanos e estamos investindo em ações afirmativas durante todo o ano”, conta Cibele Racy. “Não sabemos bem no que isso vai dar, mas estamos levantando as questões para serem discutidas abertamente, mais através do exemplo do que do discurso”, afirma a diretora, antecipando o próximo “problema” do projeto: os noivos casaram e agora estão na lua de mel, mas vão ter filhos. De que cor serão as crianças? “Isso renderá muita atividade interessante em sala”, aposta ela.
O modo como as crianças se veem e são vistas pode começar a mudar a partir de variadas formas de trabalho em sala. Leitura de livros que retratem a cultura negra a partir de sua riqueza e realcem a beleza das características afro-brasileiras ou apresentação de imagens de heróis negros, músicas, tecidos típicos, culinária, produção de autorretratos e brincadeiras em frente ao espelho são algumas das dicas dos especialistas.
Publicado em: http://www.grupoa.com.br/revista-patio/artigo/8279/o-racismo-que-vem-do-berco.aspx