Este mês não será apenas um, mas dois livros indicados por nossa formadora, Ana Carolina Carvalho. Livros que vão muito além de “aprender a contar”. Confiram!
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Livros para aprender a contar? Um gorila e Todas as pessoas contam
Ana Carolina Carvalho
Lembro-me de estar em uma reunião com educadores quando surgiu um assunto sobre o novo livro do autor e ilustrador Anthony Browne publicado no Brasil. Havia um tom de indignação ao se constatar que ele havia escrito e ilustrado um livro “para aprender a contar”, talvez rendendo-se às demandas do mercado editorial da literatura voltada às infâncias. O estranhamento certamente havia se dado devido à experiência que aqueles educadores tinham com esse tipo de publicação. Em geral, livros que ensinam a contar são carregados de estereótipos. Sugiro fazer uma busca pela internet para compreender a que me refiro: livros com desenhos “infantilizados”, sem nenhum traço de originalidade e que buscam apenas informar números e representações de quantidades às crianças, não raro trazendo a cada página, “coleções” de animais e objetos idênticos entre si. Livros assim oferecem leituras estéreis: nada acontece com o leitor. E para que mesmo precisamos de livros para aprender a contar, se temos na vida, em nosso cotidiano, muitas situações em que precisamos atentar às quantidades, com sentido e significado?
Anthony Browne, artista reconhecido, autor publicado em diversos países precisaria de fato fazer um livro desses? Penso que essa era a indignação do grupo e só fazia sentido existir até o momento em que cada um daqueles educadores colocasse suas mãos (e olhos e sentidos) no livro Um gorila, para aprender a contar. Evidentemente não só Browne não precisava fazer mais um título que ensinasse a contar, como de fato não o fez.
A diferença entre esse livro e todos os outros que costumamos ver aos montes no mercado? Um gorila não ensina apenas a contar: brinca com o título que existe às pencas por aí para, no fundo, ensinar a ver, a observar com atenção e perscrutar diferenças entre os seres, reconhecendo que somos tão familiares ao mesmo tempo em que tão singulares. A cada página, não encontramos apenas primatas – um gorila, dois orangotangos, três chimpanzés, quatro mandris, cinco babuínos seis gibões, sete macacos-aranhas, oito macacos japoneses, nove macacos colobus ou dez lêmures – mas cada um desses seres, com seu olhar único, sua expressão, seu jeito de estar no mundo. Sentimos coisas diferentes ao olhar para cada bicho tão bem desenhado – fruto do trabalho detalhista e do traçado realista de Browne, que iniciou sua carreira como desenhista num hospital.
Ao lermos esse belíssimo livro do premiado autor britânico, nos damos conta de que a expressão “contar” expande os sentidos. Há uma história no olhar de cada personagem retratada e, dessa maneira, ao contar, contamos também as vidas (ou seria contamos também sobre as vidas?): nenhum bicho substitui o outro e todos têm caminhos únicos. Não é um bonito jeito de unir a qualidade às quantidades?
Ao final, Browne ainda nos surpreende ao revelar outros primatas, abrindo espaço para que as crianças possam identificar-se ou demorar-se um pouco mais naquilo que distingue especialmente outros grupos de primatas. Nesse ponto, os detalhes de cada figura retratada ficam ainda mais comoventes.
Outro título que nos surpreende é Todas as pessoas contam, da autora norueguesa Kristin Roskifte. Neste livro, a cada página nos deparamos com uma quantidade diferente de pessoas (de 0, 1, 2, 3… até mil e depois sete bilhões e oitocentas milhões) acompanhadas de seus anseios, sonhos, medos, alegrias… Destinos. Cada pessoa conta de muitas maneiras: porque faz parte do cômputo geral da população mundial, porque sabe contar e porque conta em sua singularidade, naquilo que só ela é e pode ser, no seu jeito único de estar no mundo.
Ambos os livros são tocantes. Ambos fazem jus ao que a literatura representa: todos os destinos cabem ali, inúmeros caminhos, incontáveis formas de existir. São também comoventes porque suas narrativas descortinam vidas, condensam histórias singulares e, nesse sentido, subvertem o próprio gênero dos livros informativos para aprender a contar, virando história, aproximando-se da estrutura do conto.
No caso do livro da norueguesa Roskifte eu só teria uma observação a fazer. Ao final, ela oferece ao leitor uma espécie de legenda indicando qual seria cada pessoa retratada e narrada ao longo do livro. Um exemplo? Na página em que são seis as pessoas representadas, tudo o que o texto nos conta é: “Seis pessoas num elevador. Uma delas está com medo de se sentir excluída. Duas delas se sentem solitárias”. Compondo essa delicada narrativa, que tanto nos fala a respeito da experiência do que é existir nos dias de hoje, a ilustração apresenta ambiguidades: há uma pessoa com expressão mais entristecida; há quem que esteja absorvido, curvado e olhando o celular; quem está de costas para o leitor; quem olha para baixo; quem parece estar indiferente mirando para frente. Como saber o que cada um sente? Há quem tenha aprendido a disfarçar? Há quem seja mais explícito? Do meu ponto de vista, deixar esse trabalho para o leitor ou, ainda melhor, para que leitores conversem entre si deixaria a leitura muito mais interessante.
A despeito desse detalhe final (que também pode ser ignorado), vale muito a leitura. Aliás, as leituras. Não apenas para aprender a contar, mas para se ter experiências poéticas e literárias com o livro informativo e para que se possa refletir sobre o que significa habitar esse misterioso planeta e ser mais um, em meio a toda diversidade de existências possíveis.