ELIANA CHALMERS SISLA E ELZA CORSI¹
ALIMENTAR BEBÊS NO AMBIENTE COLETIVO DA EDUCAÇÃO INFANTIL DEVE SER VISTO COMO UM MOMENTO DE APRENDIZAGEM IMPORTANTE QUE REQUER DIÁLOGO ENTRE AQUELES QUE CUIDAM
Os pais das crianças só querem saber se ela comeu, não querem saber o que aprendeu. Ouvi a reclamação de uma diretora de creche e ponderei com ela que é uma preocupação legítima dos pais. Por esta razão é que a alimentação dos pequenos deve ser objeto de muita troca entre escola e família. Há questões culturais, afetivas e de aprendizagens cognitivas envolvidas, além da ingestão de alimentos para viver.
Por volta dos seis meses, conforme orientação do pediatra, além do leite, a criança a ingerir alguns alimentos em forma de papinhas e, também, suco e frutas in natura para complementar sua alimentação. Esta etapa importante na vida da criança representa muitas novidades e descobertas, que podem trazer também dúvidas e conflitos. Educadores e pais terão papel importante na relação que a criança estabelecerá com os alimentos e na maneira como alcançará autonomia para participar das refeições com os colegas, em torno de um ano.
1 Eliana Chalmers Sisla é psicóloga e Elza Corsi é nutricionista, ambas formadoras do Instituto Avisa Lá em Gestão para os Cuidados, Saúde e Bem-Estar
Cada criança tem seu ritmo próprio, e, neste sentido, não é possível fixar normas institucionais rígidas para as transições alimentares. Entretanto, há algumas dicas que podem ajudar os profissionais da creche e os familiares a conduzirem esse processo, assim como alguns parâmetros com relação às mudanças na forma de alimentar as crianças que levam em conta o desenvolvimento motor, as necessidades afetivas e os aspectos culturais envolvidos na alimentação.
Alimentação e vínculos afetivos
O momento da alimentação repleto de estímulos representa para o recém-nascido um dos ou a mamadeira, o colo, os cheiros, o calor da mãe ou de quem dá a mamadeira, as vozes, os ruídos do entorno formam um dos mais importantes contextos para o desenvolvimento infantil. Assim, satisfação e prazer, contato corporal, palavras afetivas ou, em muitos casos, atitudes negativas estão intimamente relacionados com o ato de se alimentar e é por meio dessas sucessivas experiências cotidianas que a criança estabelecerá um vínculo com quem dela cuida.
Por esse motivo, nas unidades educativas, as refeições devem ser momentos privilegiados para a construção de vínculos entre a educadora e a criança, representando momentos de alegria, de satisfação e de encontro. Nesse sentido, não é possível apressar as refeições ou ignorar as diferenças dos tempos de cada uma. Afinal a criança está construindo uma referência interna de fome e de saciedade, bem como relações com seu meio; entre eles, o vínculo com sua educadora. Há que se conciliar os horários institucionais com flexibilidade para atender às necessidades singulares das crianças.
As refeições são também fonte de inúmeras aprendizagens ao longo dos três primeiros anos. Aprender a comer com a colher, se acostumar aos novos sabores dos alimentos, mastigar os alimentos sólidos, pegar com a mão, fazer uso do talher e do copo, sentar-se no cadeirão e, depois, à mesa com os colegas. As atitudes da educadora precisam contemplar e respeitar a individualidade de cada criança, sua forma particular de ser e de se expressar, por via da observação atenta e da compreensão inteligente e reflexiva das suas necessidades.
Aprender a ler as manifestações de sofrimento, de desconforto e de satisfação é uma das competências da educadora de berçário. Identificar as peculiaridades e a personalidade de cada criança, estar atenta ao choro, à irritação, fome e saciedade, sede, levantando hipóteses sobre as possíveis causas e atribuir sentido, reconhecer e validar esses sentimentos, é tarefa complexa que precisa ser partilhada. O gestor da unidade, a colega de trabalho e os pais são bons aliados na busca das soluções de conforto para a criança.
Planejamento a partir da observação
Considerando que as situações de cuidados com o bebê são momentos privilegiados para a construção de um estreito relacionamento e estabelecimento de vínculo, é necessário garantir dentro da rotina do coletivo que a criança seja alimentada individualmente e, depois, em pequenos grupos, durante o primeiro ano de vida.
Isso significa um bom esforço de planejamento do serviço da unidade. Entre as ações, é possível estabelecer uma escala de alimentação, troca e sono, conforme o ritmo observado de cada criança do grupo. Algumas dormem antes de comer, outras precisam comer para depois dormir, algumas são mais ávidas, outras mais tolerantes, algumas se alimentam em casa ao acordar e terão fome mais cedo no almoço; enfim todas essas variáveis estão presentes no cotidiano do berçário e precisam ser objeto de reflexão dos educadores do grupo, em conjunto com os gestores e, servirem de base para a tomada de decisões.
Individualizar e flexibilizar as ações de cuidado, respeitando o ritmo de cada criança, contrariamente ao que se pratica em geral, em que os bebês precisam se adaptar à rotina excessivamente coletiva, constitui-se um princípio a ser observado e necessita compreensão de toda a equipe envolvida. Também é preciso cuidar para que as crianças muito pequenas não fiquem esperando as outras terminarem de comer. Assim que acabam devem ser encaminhadas para a troca, não se esquecendo de lavar as mãos da criança antes e depois de comerem.
Regra de ouro
Introduzir uma novidade de cada vez
Dessa forma, a educadora tem maiores possibilidades de avaliar os resultados e as manifestações das crianças em relação às novidades e retroceder quando for o caso.
Nenhuma colherada a mais
É sempre a criança quem deve decidir quanto necessita comer. Dessa forma aprenderá a regular suas necessidades biológicas de fome e saciedade.
Organização do local e o clima das refeições
Na sala dos grupos, no refeitório ou outro espaço existente é possível organizar um local específico, tranquilo, para alimentar as crianças bem pequenas com mamadeiras e também para a introdução das primeiras papinhas ainda no colo. É preciso assegurar que a educadora esteja confortavelmente sentada com pés e braços apoia dos e tudo ao alcance das mãos: o alimento ou a mamadeira, o babador, o pano de limpeza. Uma poltrona com braços e uma mesa de apoio são bastante úteis e permitem à educadora estar bem posicionada².
É importante criar um clima de intimidade e evitar os estímulos ao redor, como som, luz, brinquedos, que podem distrair a atenção da criança. Afinal, o foco é a relação que ali se estabelece. Enquanto isso, as outras crianças exploram materiais e brincam com autonomia num espaço seguro, ou dormem sob os cuidados de outra educadora.
O que a educadora precisa observar em cada criança e conversar com os familiares
♦ Como é o ritmo biológico e a rotina da criança com relação ao sono, fome, sede e evacuação.
♦ Que posturas a criança já conquistou: rolar, se arrastar, sentar (por si só), engatinhar e andar.
♦ Qual é seu nível de tolerância para aguardar ser atendida na fome, sono e troca.
♦ Se os dentes já nasceram.
♦ Por quais alimentos demonstra predileção.
♦ A temperatura dos alimentos preferidos. Atenção para não oferecer alimentos frios, nem quentes demais.
♦ Verificar se sente mais sede se comparada às demais crianças. Suar muito pode ser um indicador. É necessário oferecer permanentemente água ou suco.
♦ Observar como demonstra estar saciada.
♦ O que gera recusa.
2 Baseado no manual descritivo para aquisição de mobiliário – Implantação da escola de Ensino Infantil – FNDE.
Bebês “donos da situação” ou os conflitos na hora de comer
O pediatra americano T. B. Brazelton demonstrou que a recusa em se alimentar está relacionada à negativa, pelo adulto, da independência da criança para gerir por si própria sua alimentação. A partir dos sete meses com as novas conquistas motoras para se sentar e para pegar pequenos objetos (ou alimentos!) entre o polegar e o indicador (início do movimento de pinça que estará completo em torno de um ano) toda uma imensa gama de possibilidade de exploração do mundo se abre para o bebê, entre elas poder pegar pedaços de comida e levar à boca e aprender a manipular a colher. Segundo o pediatra, o bebê deseja ser o “dono da situação”. Caso o adulto se oponha a essa legítima necessidade de autonomia, os momentos de refeição podem se tornar foco de conflitos³.
Também é necessário organizar o serviço de maneira que uma mesma educadora – a de referência – receba a criança, alimente, troque e a coloque para dormir. É essa mesma educadora que estabelecerá um diálogo mais estreito com os familiares. Depois de alguns meses na creche, aos sete ou oito meses de idade, é possível que outra educadora (da dupla) passe a partilhar os cuidados daquela criança ampliando, assim, o universo de relações e a riqueza das interações do ambiente coletivo.
3 Momentos decisivos do desenvolvimento infantil, de Berry Brazelton. Ed São Paulo: Martins Fontes, 1994.
Condutas individualizadas
Individualizar as condutas significa observar atentamente o desenvolvimento do bebê buscando identificar os sinais de que chegou a hora de introduzir mudanças. O quadro Indicadores de mudanças pode ajudar o profissional em suas decisões e orientar os familiares.
Cada nova conduta deve ser avaliada criteriosamente, não esquecendo que as transições significam novas aprendizagens e que, para isso, é necessário tempo. Uma papinha recusada não significa que a criança não goste do alimento, ela precisa de tempo para se acostumar ao novo sabor.
Com todas essas variáveis em jogo é possível planejar as mudanças na rotina dos berçários. Assim como o desenvolvimento da criança pequena anda de “vento em popa”, a rotina se adapta às novas necessidades em estreita ligação com os afazeres da cozinha. Merendeiras ou lactaristas têm um papel fundamental e precisam igualmente conhecer muito bem esses processos, respeitando as demandas da educadora, cuidando do sabor dos alimentos servidos e da textura, colaborando para disponibilizar os utensílios à mão dos educadores (garfo para amassar, colher para a criança), velando pela temperatura adequada e cozimento, guardando um prato para depois, se necessário. Flexibilidade e diálogo são palavras de ordem!
Parceria com os pais
Cercada de sentimentos, construídos desde o nascimento, a alimentação do bebê tem muitos significados para as famílias e, em especial, para as mães. Ouvir os familiares buscando identificar os afetos envolvidos na alimentação contribui decisivamente para a construção dessa parceria de confiança. Portanto, educadora e família precisam de tempo para conversar, conviver, atuar juntos, por exemplo, na refeição da criança ou na troca, para conhecer os hábitos e o jeito dos pais ao lidarem com o bebê. Convidar os familiares a participar da vida do berçário em alguns momentos é um bom caminho para construir essa relação.
Tomemos como exemplo o açúcar habitualmente colocado na mamadeira. Sabe-se que é papel da escola e da família construir um paladar infantil com pouco ou nenhum açúcar. Entretanto, na cultura brasileira, é muito comum oferecer mamadeiras e sucos excessivamente açucarados. Açúcar e afeto estão estreitamente relacionados em nossas representações (oferecemos bombons a quem gostarmos, não é?). A redução do açúcar pela escola precisa ser combinada com os pais, informando as consequências desse hábito no aumento da obesidade, mas para alguns pais isso pode ter o significado de castigo ou punição, “dar dó”. Como fazer? Primeiro aceitar a mamadeira do jeito que é preparada em casa. Depois informar sobre a importância de construir hábitos alimentares saudáveis e, então, combinar que o açúcar será reduzido gradativamente (meia colher por semana) e conforme aceitação pela criança, de forma a que ela se acostume ao novo paladar.
Os novos hábitos e formas de alimentação serão introduzidos pelo educador sempre após informar as razões e combinar
as mudanças com os familiares, buscando identificar os significados e sentimentos envolvidos, considerando a opinião
deles e compartilhando os avanços, orientando para que as condutas sejam introduzidas em casa também, buscando a
colaboração daqueles que cuidam na observação das reações das crianças, pois reações alérgicas podem advir da introdução de alguns alimentos e precisam ser identificadas.
Passe livre no Berçário 1
Simone da Silva Alves, Joelma Guimarães e Natcha Priscila Loreiro4
O tempo é a principal matéria-prima do trabalho na escola. Ele é o possibilitador ou impossibilitador das relações, das descobertas e das experiências das crianças e dos adultos. Com essa ideia foi pensado o “passe livre” das turmas de berçários 1 (crianças de zero a um ano) nos refeitórios das escolas infantis de Esteio (RS). Prática que possibilita às crianças das turmas dos berçários realizarem as refeições de acordo com o tempo de cada uma, rompendo com a necessidade de todas se alimentarem ao mesmo tempo. Nesse contexto, os profissionais dos berçários podem levar as crianças, em pequenos grupos, ao refeitório durante todo o período destinado à alimentação – cerca de duas horas. Um movimento de cuidado integrado à pedagogia cotidiana da escola, considerando que as crianças são sujeitos de direitos e precisam ser respeitadas em sua individualidade e no seu desenvolvimento.
A escuta da polifonia de vozes dos profissionais que trabalham com os bebês nos levou a refletir sobre o tempo destinado às refeições. Nos momentos das visitas técnicas nutricionais/pedagógicas conseguimos também observar que havia choro, sono e impossibilidade de promover a descoberta do sabor dos alimentos. Ou seja, começamos a perceber que os bebês não queriam só comida. Alimentar somente o corpo não bastava, era preciso mais do que isso. Era preciso compreender que os momentos de alimentação deveriam ser momentos de prazer, de interações, de descobertas e, para isso, havia a necessidade de reorganizar o tempo de se alimentar, apresentando de forma lenta e gradual diferentes grupos alimentares, sem rigidez de horários, respeitando a vontade da criança. Foi necessário transcender a prática de uma corrida de obstáculos, de cumprir tarefas rotineiras, repetitivas e estressantes. Possibilitar que as crianças fossem alimentadas, no sentido amplo do termo, entendendo a alimentação como uma prática que envolve percepção, relação e interação, não reduzindo o ato a simples ação de levar o alimento à boca. Em busca de um tempo agradável, tranquilo, em que as crianças pudessem se alimentar com qualidade, não sendo vencidas pelo cansaço ou pelo sono, resultados de uma maratona desenfreada para que se ganhe tempo. Um ganhar, aqui entendido, como sinônimo de se fazer muito em um curto período.