Economizar água sim, descuidar não!

DAMARIS GOMES MARANHÃO¹


A CRISE DA ÁGUA CHEGA EM UM MOMENTO EM QUE OS CUIDADOS COM O BEM-ESTAR AINDA NÃO ESTÃO SOLIDIFICADOS. COMO TODA CRISE, PODE SER UM RISCO ÀS PRÁTICAS DE CUIDADO OU UMA BOA OPORTUNIDADE PARA FORTALECÊ-LAS EM VEZ DE NEGLIGENCIÁ-LAS POR FALTA DE INFORMAÇÃO


E m plena crise hídrica na região Sudeste,  entre fim de 2014 e início de 2015, vários municípios estabeleceram porcentuais de redução de consumo de água pelas unidades educacionais, com críticas pela mídia, pela forma como alguns gestores planejaram as ações para atingir a meta, sobretudo nas creches. Essa polêmica aponta para a necessidade de se
retomar alguns conceitos e informações sobre o cuidado com as crianças em contextos coletivos e educacionais.

Elegemos os bebês ou as crianças menores de dois anos porque essa faixa etária é, em alguns aspectos, mais vulnerável e dependente de cuidados cotidianos como oferta de alimentação, troca de fraldas, entre outros. Entretanto reconhecemos sua grande capacidade de adaptação ao meio humano, desde que nascem, mobilizando-nos para cuidar delas.


1 Doutora em Ciência da Saúde, é consultora da equipe de saúde do CEDUC – Gestão e Terceirização de Creches nas Empresas; formadora do Instituto Avisa Lá; professora do curso de enfermagem e residência multidisciplinar em neonatologia da Universidade de Santo Amaro (Unisa) e de Pós-graduação em Formação e Gestão em Educação Infantil do Instituto Superior de Educação Vera Cruz, em São Paulo (SP).

Bebês ou lactentes?

O campo das ciências da saúde denomina a faixa etária menor de um ano como “lactentes” por serem preferencialmente nutridos com leite materno. Quando o aleitamento materno é descontinuado ou não é possível, o leite de outra espécie é oferecido, na maioria das vezes, em recipientes que simulam o seio, como mamadeiras e bicos, que se tornam, pelo material, formato e continente rico em proteína, ambientes propícios para crescimento microbiano, se não forem adequadamente higienizados. Entretanto a forma de alimentá-los ainda assim é próxima do contato com o corpo da pessoa que oferece o leite, seja no peito ou na mamadeira, o que possibilita uma interação importante para a constituição do sujeito.

Entre seis e doze meses de idade, os bebês estão mais maduros do ponto de vista do desenvolvimento afetivo, neuropsicomotor, digestivo e imunológico, entre outros sistemas. É um período de grandes transformações, do qual fazem parte a habilidade de sentar-se, usar as mãos, a erupção dos primeiros dentes decíduos ou “de leite”. Nessa fase, o lactente começa a experimentar outros alimentos, próprios de cada cultura, substituindo-se gradativamente as mama das por papas, sucos, purês. Esse processo continua com a modificação da consistência dos alimentos, sua diversificação e também da construção de técnicas corporais e uso de objetos, como a colher e o copo. Ao final do primeiro ano, espera-se que o bebê experimente e consuma a maioria dos alimentos preparados para as crianças maiores e para os adultos em sua cultura.

Essas habilidades são desenvolvidas, podendo variar conforme o histórico de alimentação de cada criança na família ou na creche. Ao longo do seu segundo ano de vida, ainda necessita de alimentos bem cozidos, picados, e de alguma ajuda do adulto para conseguir se alimentar com independência. É nesse período que completará a erupção e o crescimento dos 20 dentes que constituem a dentição decídua apenas aos 24 meses concomitante com o desenvolvimento de habilidades para manusear os talheres e de interação com os colegas de mesa. Às vezes, prefere usar as mãos para pegar os alimentos e levá-los à boca, uma vez que esta é a primeira ferramenta usada pelos humanos para fazê-lo.

Os especialistas em Educação Infantil empregam o termo “bebês” no lugar de “lactentes”, mas nem sempre ficam claras as idades compreendidas neste termo genérico, embora seja mais simpático do que o termo técnico empregado pelos profissionais de saúde.

Quando os bebês vão para a creche?

Como a Educação Infantil é um direito da criança de zero a cinco anos, 11 meses e 29 dias, esse ciclo inclui os “bebês” desde o nascimento. Sem dúvida, ninguém advoga que recém-nascidos frequentem creches, o que seria contraindicado pela sua necessidade de contato corporal e de aleitamento materno constante e pela sua vulnerabilidade no contexto coletivo, mas a lei abre essa possibilidade.

Por um lado, pode-se partir do pressuposto de que a licença maternidade para as mães inseridas no mercado de trabalho tem duração de 120 dias e de 180 dias para algumas categorias, embora ainda em minoria. Por outro, sabe-se que o direito à creche do ponto de vista da educação não está condicionado ao trabalho materno, mas muitas mães são adolescentes, estudantes, e nem sempre tem garantido o afastamento por esse período, e precisam continuar frequentando a escola.

Assim, é preciso partir do pressuposto de que as creches devem estar preparadas para atender, sobretudo no início do ano letivo, bebês com dois, três, quatro, cinco, seis meses ou mais, que requerem cuidados constantes, no sentido amplo do termo (psicofísicos e associados à educação).

Para que servem as mãos?

Considerando-se a diversidade de idades dos bebês que são matriculados nas creches, alguns ainda mamam no peito e outros, na mamadeira ou já tomam leite no copo. Em um semestre na mesma sala, é possível haver bebês apenas com alimentação láctea, interagindo com os que iniciam a alimentação complementar aos quatro ou seis meses, concomitante com a adaptação ao novo ambiente. Ao serem alimentados pelos educadores, também aprendem a saborear novas texturas, sentir novos aromas e gostos, usar novos utensílios que manipulam com as mãos.

Da mesma forma, os bebês usam as mãos para reconhecer o próprio corpo, brincar com os pés, enfiar no nariz e depois tocar o rosto materno, de outra criança ou do professor da creche. Usam-nas também para manusear diferentes objetos, para apoiarem-se e se locomoverem no ambiente, seja rolando, se arrastando, engatinhando ou como apoio ao iniciar os primeiros passos.

Simultaneamente, eles desenvolvem o próprio sistema imunológico, uma vez que a reserva de anticorpos fornecida pela mãe durante a gestação, pela amamentação e por meio do contato corporal, começa a diminuir após o sexto mês de vida. Elas começam a fabricar os próprios anticorpos por meio do estímulo de vacinas especificas ou pelo contato gradativo com micróbios que fazem parte do contexto familiar. Isto significa maior vulnerabilidade às infecções adquiridas pelo contato com uma maior “carga viral” ou microbiana, ou seja, elas podem lidar com doses compatíveis com suas defesas em construção, de acordo com os micróbios a que estavam expostas na vida familiar, mas não com grande quantidade ou com determinados micróbios e toxinas.

Assim, dependendo de seu histórico de nascimento, aleitamento, imunização e contexto familiar e comunitário, elas podem reagir bem a esses primeiros desafios se defendendo, ou adoecerem de forma mais grave quando entram em contato pela primeira vez com uma carga de micróbios “desconhecida” do seu organismo ou meio.

Por isso, elas podem adoecer mais nos primeiros seis meses de convivência na creche, com menor ou maior gravidade.

Lavar as mãos é prioridade

Para proteger as crianças mais vulneráveis é preciso um rigor maior na higiene dos utensílios, ambientes, durante os cuidados, do que aqueles adotados no contexto doméstico. Os professores sabem que sempre há alguma criança febril, com ou sem coriza, dor de ouvido, falta de ar, erupções na pele, conjuntivite, ou distúrbios gastrointestinais como estomatite, diarreia, vômito. Às vezes são informados que uma criança do grupo foi internada com meningite viral; outra, com bronquiolite. As mães se queixam que os filhos adoeceram mais depois que entraram na creche, e atribuem a ocorrência à qualidade do cuidado, o que nem sempre corresponde aos fatos.

Nem todas as infecções com maior incidência em crianças de creches são imunopreviníveis. Um exemplo disso é um enterovírus (Cocsakiee vírus) que pode causar diarreia, conjuntivite, estomatite, doença mão-pé-boca, meningite viral. Há registros de surtos em creches por este agente que é veiculado pelas secreções orais, pelas fezes e mãos contaminadas.

Estudos no campo da saúde evidenciam que o nível de contaminação nas mãos das crianças é semelhante ao nível de contaminação dos adultos que cuidam e interagem com elas. Há também estudos sobre contaminação de mãos, torneiras, pias, brinquedos, superfícies de mesas por Cistos de Giárdia Lamblia que só é eliminado pela limpeza mecânica e não química, e que atinge crianças maiores.

O principal veículo de transmissão das infecções em ambientes coletivos como as creches, conforme estudos nacionais e internacionais, são as mãos de crianças e adultos, bem como os objetos tocados por elas, que se contaminam com secreções nasais, perdigotos, secreções da conjuntiva e fezes, sobretudo durante os cuidados cotidianos (limpar o nariz, trocar as fraldas, acalentar, transportar, servir e oferecer alimentos, que exigem um contato direto com os professores e familiares) e também durante as interações e brincadeiras entre as crianças.

O principal veículo de transmissão das infecções em ambientes coletivos como as creches, conforme estudos nacionais e internacionais, são as mãos de crianças e adultos, bem como os objetos tocados por elas, que se contaminam com secreções nasais, perdigotos, secreções da conjuntiva e fezes, sobretudo durante os cuidados cotidianos (limpar o nariz, trocar as fraldas, acalentar, transportar, servir e oferecer alimentos, que exigem um contato direto com os professores e familiares) e também durante as interações e brincadeiras entre as crianças.

Mesmo crianças aparentemente saudáveis podem estar incubando e disseminando alguns vírus e bactérias, ou eliminando ovos de parasitos, e a higiene com base em procedimentos testados é o melhor método de controle.

Há dados que evidenciam, em creches que atendem crianças de diversas classes sociais e condições de vida, que durante determinadas épocas do ano ocorrem surtos² de diarreia, vômito, estomatite, conjuntivite, doença mão-pé-boca, bronquiolite, meningite, com predominância viral. Uma das principais medidas de controle é a lavagem de mãos, limpeza de superfícies e de brinquedos. Esses procedimentos de higiene devem ser orientados por protocolos-padrão, que devem ser seguidos pelos professores, gestores, equipes de limpeza e de preparo e oferta de alimentos.

Além da higiene, é fundamental a vigilância epidemiológica, notificação e investigação do aumento dos casos no período com consequentes medidas de controle pelos serviços de saúde, como imunização de bloqueio, dependendo do agravo, aprimoramento dos procedimentos de cuidados, entre outros.

Entretanto, como formadora de profissionais de Educação Infantil e de Saúde, percebo que ainda existe muita dificuldade relativa à adesão a esses procedimentos, talvez por falta de condições ambientais, materiais, razão adulto-criança inadequada, associada a uma cultura institucional que ainda dissocia cuidado e Educação Infantil.


2 Entendemos surto como dois casos na semana com correlação epidemiológica ou aumento da incidência mediana do agravo naquele contexto, de acordo com análise baseada em estudos de incidência de anos anteriores.

Higiene e pouca água

Embora a indústria química e farmacêutica e os próprios serviços de saúde indiquem o álcool a 70% para complementar ou, em algumas situações, substituir a lavagem de mãos quando for impossível lavá-las (em situações de emergência como suporte básico de vida na rua, nos prontos-socorros, em campanhas de vacinas, nos cuidados prestados em ambulâncias, ou outras situações em que não é possível ter acesso imediato a uma torneira e água corrente), há restrições no seu uso pelas crianças. Sabe-se que crianças menores de dois anos não deveriam ter as mãos higienizadas com álcool gel, pelo fato de levá-las aos olhos, à boca, e também pelas características da própria pele em desenvolvimento, além de absorverem pela inalação o produto que pode ser tóxico para seu organismo ainda imaturo.

Mesmo os profissionais, ao usarem álcool gel para friccionar as mãos com frequência, perceberão que é necessário lavá-las depois de algum tempo, uma vez que elas ficam impregnadas com uma película. As recomendações são claras: álcool gel ajuda, mas não substitui a lavagem de mãos para controle de infecções.

Uma forma de economizar água é a técnica empregada para lavar as mãos, que podem ser esfregadas com pouco sabonete líquido, em toda a sua extensão, três vezes cada parte, até o pulso e os dedos, e depois enxaguá-las rapidamente, de preferência em torneiras programadas para fechar automaticamente ou por meio de pedal. As crianças podem aprender a fazê-lo com a mediação do professor, que precisará lavar as mãos dos bebês no momento da troca de fralda e antes das refeições. Dessa forma, eles reduzem o que é classificado como microbiota transitória, ou seja, aquela adquirida durante o contato com outras pessoas.

Higiene bucal

Pesquisas realizadas em algumas cidades brasileiras evidenciam que apenas 30% dos jovens de 18 anos têm todos os dentes íntegros, o que significa que 70% desses mesmos jovens os perderam ou tiveram de restaurá-los, devido a práticas inadequadas de higiene aprendidas na infância, alimentação rica em carboidratos (farináceos, amidos, açúcares) e falta de acesso a dentista.

Os cuidados com a boca e os dentes devem se iniciar na primeira dentição das crianças, mas no contexto coletivo espera-se que pelo menos seja ensinado e praticado para constituir um hábito para todo o ciclo vital, após a principal refeição e antes do repouso. As famílias podem ser informadas e sensibilizadas com relação à importância de evitar o consumo excessivo de refrigerantes e alimentos com muito açúcar, e ajudá-las a realizar a higiene da boca e dos dentes antes de dormir, à noite. Ao dormirem, a produção de saliva diminui, o que propicia o crescimento das bactérias que causam as cáries.

Ensinar as crianças demonstrando como enxaguar a boca após escovar os dentes utilizando um copo com água, ao invés de deixar a torneira aberta, promove um hábito de forma sustentável. Ensiná-las que precisam usar apenas uma quantidade mínima de creme dental (equivalente a um grão de arroz). O importante é a escovação mecânica delicada e correta que remove a placa de bactérias que cresce nos dentes e na língua, responsável pelo mau hálito, além de corroerem o esmalte.

Higiene do ambiente

Em uma das recomendações descritas pela imprensa relativas a higiene do ambiente, atribuída à fala de profissionais de educação, lê-se: “varrer antes de lavar”.

As salas das crianças nas creches, ambientes de troca e refeitórios não devem ser varridos, devido à aspersão de poeira que contém restos de pele, cabelos, ácaros, que acaba por deslocar-se para as superfícies, contaminando mesas, berços e brinquedos. As superfícies e os pisos devem ser limpos com pano seco, e, depois, pelo método úmido, o que não significa usar a mesma água do balde contaminada pelo pano que retirou a primeira sujeira. Independente de se ter ou não racionamento de água, desaconselha-se jogar água com mangueira ou balde tanto pela especificidade da técnica mais adequada para esses ambientes como pela manutenção dos pisos vinílicos e segurança das crianças e dos adultos. É
possível realizar uma limpeza de alto nível e economizar água, mas para isso é preciso providenciar mops³ específicos para cada ambiente, alguns próprios para retirada do pó, outros para esfregar, e os que são usados para remover restos de alimentos do refeitório. Para limpar, basta detergente neutro diluído, evitando-se o excesso de espuma, o que reduz o consumo de água. Os mops, quando suficientes, podem ser lavados posteriormente na máquina de lavar, economizando-se tempo, mão de obra, água e sabão. Secá-los ao sol evita mantê-los úmidos no rodo ou na área de serviço, evitando assim a proliferação de germes nesses ambientes. São práticas culturais de muitas donas de casa, que às vezes vão trabalhar na limpeza da creche e as repetem, pois não são treinadas nem supervisionadas do ponto de vista técnico.

Outra prática cultural é a mistura de solução clorada com sabão, expondo o trabalhador e as crianças aos vapores irritantes para as vias respiratórias. Deve-se evitar o emprego de desinfetantes com vapores e resíduos irritantes ou tóxicos para as crianças e trabalhadores da equipe. Os produtos usados de forma inconsequente, muitas vezes por influência de propagandas, retornam aos córregos e riachos, cujas águas abastecem as represas que fornecem água para o consumo humano e para a sobrevivência de todas as espécies. Para que a limpeza do ambiente seja realizada de forma adequada e sustentável, é preciso investir na formação das equipes de limpeza.

Gestão de cuidado com responsabilidade

Considerando o exposto, as recomendações veiculadas na imprensa derivadas de prováveis falas de gestores ou de autoridades que planejaram reduzir cuidados com as crianças, com os profissionais ou com o ambiente, podem ser um “tiro no pé da Educação Infantil”. Isso porque, muitas vezes, elas acabam desconsiderando as especificidades dos ambientes para lactentes e crianças que ainda usam fralda e não compreendem os riscos de determinados contatos com secreções. Orientações genéricas e sem fundamento técnico podem agravar o problema da falta de água no lugar de economizá-la, além de comprometer a qualidade do cuidado com as crianças, luta que os formadores e especialistas vêm empreendendo com muito esforço. Se aumentar a demanda de crianças e familiares ao serviço de saúde devido a surtos de diarreia, conjuntivite e infecções respiratórias, como também outras mais frequentes em ambientes coletivos como creches, que se espalham posteriormente na comunidade, aumenta-se o consumo de água, além de colocar em risco a vida e o bem-estar das crianças, de professores e familiares.


3 Utensílios de limpeza industrializados diversificados que são utilizados para limpezas especializadas. Encontrados em formatos variados, semelhantes a esfregões, rodos, vassouras, esponjas com cabos etc., geralmente feitos de algodão ou microfibra, pela facilidade de sua limpeza e de acesso aos cantos difíceis do ambiente. Alguns mops vêm equipados com baldes e acessórios de adaptação às mais diversas necessidades.
Posted in Revista Avisa lá #62.