ANDREA MAIA DE ARAÚJO¹
APOIAR OS ALUNOS PARA QUE SE TORNEM LEITORES PROFICIENTES É TAREFA INALIENÁVEL DA ESCOLA. A FORMADORA EXPLICITA COMO AJUDOU OS PROFESSORES, POR MEIO DA LEITURA COMPARTILHADA, A CUMPRIR ESSA IMPORTANTE TAREFA
Ter como premissa ensinar a ler, enquanto o aluno lê textos, a princípio parece ser uma ideia um tanto antagônica. Ensinar a ler pressupõe que o aprendiz não saiba fazê-lo, portanto, como fazer isso durante o “ato de ler” praticado pelo aluno em questão?
É possível verificar que o ensino da leitura muitas vezes é guiado pela compreensão de que primeiro se ensina a ler por meio da aprendizagem de uma técnica – domínio das regras de combinação do código para compreensão do código – e somente depois se ensina a compreender. Segundo Mirta Luisa Castedo², não existe uma divisão taxativa entre “ensinar a ler” e “ler”. No entanto, essa diferenciação é ainda presente nas práticas de sala de aula. Essa prática não acontece no vazio, mas tem como pressuposto uma concepção de língua e de linguagem e uma concepção de ensino e aprendizagem.
1 Professora Coordenadora do Núcleo Pedagógico na Diretoria Estadual de Ensino Sul 2, São Paulo (SP).
2 Situações de leitura na alfabetização inicial: a continuidade na diversidade, de Mirta Luisa Castedo. Congresso Internacional de Educação da Faculdade de Filosofi a e Letras de Ubá, MG, 1996, palestra 3.
Quando a aprendizagem se torna significativa
Quando se concebe a aprendizagem como um processo que se dá por meio da interação do sujeito com o objeto de conhecimento e com seus pares, é preciso organizar situações de aprendizagem que considerem esses aspectos. No caso do ensino da leitura como prática social, pode-se utilizar a leitura compartilhada, que é uma modalidade didática que favorece a circulação de informações sobre as estratégias utilizadas pelos diferentes leitores para atribuir sentido a um texto. Fazer desse tipo de leitura uma atividade permanente na rotina de estudos dos alunos traz benefícios significativos para os avanços dos estudantes.
Ao participar da formação do programa Ler e Escrever³, fui me dando conta de que a leitura compartilhada poderia ser uma das alternativas para ajudar na melhoria do desempenho dos alunos de minha escola como leitores. Pois as avaliações internas4 e externas5 vinham revelando que grande parte deles tinha dificuldade em relação à compreensão e à fluência leitora. Fiz uma análise mais aprofundada do processo de ensino e aprendizagem, o qual apontou também fragilidades na forma como os professores lidavam com o ensino da leitura.
Ensinar a ler enquanto se lê passou a ser um desafio para mim. Como ensinar aos professores um ensino da leitura que incidisse efetivamente nas aprendizagens dos alunos?
3 É um conjunto de ações articuladas que inclui formação, acompanhamento, elaboração e distribuição de materiais pedagógicos e outros subsídios, constituindo-se como uma Política Pública para o Ciclo I, que busca promover a melhoria do ensino em toda a rede do Estado de São Paulo.
4 Na Escola Estadual Presidente Café Filho, onde este trabalho foi realizado – Diretoria de Ensino Sul 2 – São Paulo (SP).
5 O Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) é uma avaliação externa da Educação Básica, realizada desde 1996 pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo – SEE/SP. Tem como finalidade produzir informações consistentes, periódicas e comparáveis sobre a situação da escolaridade básica na rede pública de ensino paulista, visando orientar os gestores do ensino no monitoramento das políticas voltadas para a melhoria da qualidade educacional. A Prova Brasil – Avaliação Nacional da Educação Básica abrange de maneira amostral os estudantes das redes públicas e privadas do País, localizados na área rural e urbana e matriculados no 5o e no 9o anos do Ensino Fundamental e também no 3o ano do Ensino Médio. Nesses estratos, os resultados são apresentados para cada Unidade da Federação, Região e para o Brasil como um todo.
Planejamento da ação formativa
Planejei uma sequência formativa que não só contemplasse o trabalho na Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo6, mas também envolvesse diretamente minha atuação e acompanhamento do trabalho em sala de aula.
Fiz parceria com uma das professoras, tendo em vista esse trabalho tornar-se referência para as demais. Os critérios de escolha da professora foram a série/ano em que dava aula (4a série/5o ano) e seu perfil; se tinha disponibilidade para aprender, enfrentar desafios e socializar com seus colegas, se compreendia a importância da parceria (professores/coordenação) no apoio à aprendizagem dos alunos, se receberia a crítica como parte de um pro cesso construtivo, se não tinha problemas com a concepção de ensino e aprendizagem que norteia a prática da escola e se era bastante comprometida.
As atividades de leitura compartilhada realizadas por mim e pela professora com os alunos foram gravadas, para serem tematizadas nas aulas de trabalho pedagógico coletivo. O principal objetivo era modelizar os procedimentos didáticos explicitando seu papel no ensino da leitura. Além disso, discutir a importância do planejamento das atividades.
6 A Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPC) ocorre uma vez por semana com a duração de duas horas consecutivas e a participação dos professores e da coordenadora pedagógica.
Estratégias de formação
A principal estratégia utilizada na formação dos professores foi a dupla conceitualização7, em que realizei uma leitura compartilhada a fim de discutir e explicitar os meus procedimentos didáticos e o que estava por trás deles. Em seguida veremos um trecho dessa discussão em ATPC em que realizei a leitura compartilhada da notícia “A mão ativa o cérebro”8com os professores.
Registro de formador
Na ATPC, informei aos professores que faríamos uma leitura compartilhada de um texto. Para isso, solicitei a um professor que desempenhasse o papel de observador. Sua tarefa seria registrar os encaminhamentos que daria à atividade e procedimentos didáticos utilizados.
Fiz uma retomada dos objetivos de se trabalhar com os alunos esta atividade. Em seguida, desenvolvi com o grupo de professores uma situação de leitura compartilhada, em que tiveram de observar e registrar meus procedimentos no decorrer da atividade.
A princípio, mostrei apenas o título da matéria, solicitei aos professores que lessem e que formulassem hipóteses sobre o que trataria um texto com aquele título. À medida que falavam fui anotando suas ideias.
Em seguida, coloquei o subtítulo e solicitei que lessem e verificassem se confirmava ou não suas ideias e que informações ele trazia. E perguntei qual a relação das imagens com título e subtítulo e por que o autor se utilizou delas. Houve vários comentários. Solicitei que um professor lesse um trecho do primeiro parágrafo, até a palavra museu. Questionei alguns aspectos e depois perguntei por que a escrita pode virar peça de museu. Neste momento, verifiquei que meus encaminhamentos eram adequados ao que eu pretendia. Continuamos com a leitura do texto até o final do segundo parágrafo, discutimos outros aspectos (norteados pelas questões que havia planejado). Paramos novamente para discutir aspectos do texto. Alguns professores disseram que “Hoje em dia, cada vez mais os alunos têm acesso ao computador, seja em casa, na lan house e até mesmo na escola, e isso faz com que percam a vontade de escrever manualmente, uma vez que atualmente o meio de se comunicarem é eletrônico, o que afasta ainda mais os alunos do lápis e do papel e se torna prejudicial para o funcionamento de algumas áreas do cérebro, como diz a neurociência”.
Propus a leitura do texto até o final e voltamos em alguns pontos tendo em vista garantir a construção de sentido do texto pelo grupo de professores. Questionei o porquê de o autor voltar à Antiguidade após referir-se à neurociência. Alguns afirmaram que “Ele está tirando o crédito dos Estados Unidos da América para reforçar os estudos já realizados sobre o assunto”. Em seguida, perguntei por que o autor faz referência ao Egito. “Foi lá que tudo começou; onde mais se valorizou o registro; onde se deu início à escrita etc.”
Perguntei também sobre o papel das imagens e sua relação com o título e subtítulo. Responderam dizendo: “Mostram que a História foi construída à mão; que são fundamentais para mostrar quanto o registro à mão foi importante; que esses registros já viraram peça de museu, que se não tomarmos cuidado a pouca escrita de hoje também virará”.
Analisamos a relação entre o título e a pesquisa. Pude perceber, pelas colocações e à medida que líamos e discutíamos, quanto o grupo foi construindo o sentido do texto e se posicionando a respeito do tema.
No final, analisamos o caminho feito por mim para conduzir essa atividade, discutindo o que estava por trás de minha ação.
7 A dupla conceitualização envolve duas etapas principais. Na primeira, o coordenador propõe uma atividade desafiadora para os professores. O objetivo é fazer que eles vivenciem a situação de aprendizagem e identifiquem os conhecimentos que estão em jogo para ensinar determinado conteúdo. Na segunda etapa, o formador mostra como ensinar. A dupla conceitualização surgiu dentro da didática da Matemática, e os programas de formação mais atualizados estão fundamentalmente apoiados nesse tipo de intervenção. Ela recebe esse nome por permitir que, durante a formação, ocorram paralelamente dois aprendizados: sobre o objeto de ensino e sobre as condições didáticas necessárias para que os alunos se apropriem dos conteúdos, conforme explica a educadora argentina Delia Lerner no livro Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002, p. 107-8.
8 Revista Veja, Seção de Educação – 27/julho/2011, p. 94-5.
Estudos de diferentes textos sobre conteúdos de leitura e leitura compartilhada também fizeram parte da formação. Com base nos estudos realizados e conscientes da importância da leitura compartilhada
para o desenvolvimento da proficiência leitora iniciamos o planejamento de uma sequência de atividades para o trabalho com os alunos.
Planejando as atividades com os professores
Selecionamos alguns textos jornalísticos, tanto na versão impressa quanto na eletrônica, para ler com os alunos. Estudamos os textos e elaboramos roteiros para nortear essa leitura. Os professores realizaram a atividade com seus alunos. Meu papel foi o de observar, intervir e orientar o desenvolvimento da atividade. No desempenho desse papel, identifiquei as dificuldades da professora que eu estava acompanhando mais de perto. Mas à medida que a professora desenvolvia as atividades e
discutia comigo os encaminhamentos a partir das observações e orientações, foi-se explicitando o avanço dela, como também dos alunos. O mesmo ocorreu com os outros professores. Foi perceptível quanto se apropriaram dos conteúdos de leitura e dos procedimentos didáticos para ensiná-los.
A observação em sala de aula resultou em uma devolutiva à professora por meio dos vídeos das aulas gravadas. À medida que assistia, apontava o que poderia ter feito diferente e melhor. Foi se percebendo no processo de ensino e aprendizagem e dando conta de quanto o envolvimento dos alunos resultou em uma ação didática e um ensino mais consequente, e dessa forma conseguiu melhorar e aprimorar sua prática em sala de aula. Olhar a prática dessa perspectiva é o que possibilita o diálogo entre o ensino e a aprendizagem, segundo Telma Weisz9. A compreensão se evidencia no depoimento da professora, a seguir.
Quanto mais eu aprendo a fazer leitura compartilhada com os alunos; quanto mais domínio eu tenho dos procedimentos didáticos e clareza dos conteúdos implicados em uma atividade como essa, mais eu observo que os alunos aprendem. É, portanto, uma relação direta.
Profa Maria de Lourdes
A avaliação dos alunos em relação à fluência e à compreensão leitora antes e depois desse trabalho revelou que o investimento na formação dos professores trouxe resultados positivos na aprendizagem dos alunos, conforme relato da professora e de alunos:
9 Telma Weisz, especialista em Alfabetização e supervisora pedagógica do programa Ler e Escrever, fala sobre a relação entre a cultura escrita, as práticas de linguagem e a alfabetização em O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo: Ática, 2000.
Observei também que a fluência leitora deles teve uma melhora surpreendente. No início do ano, quando eram postos a ler, percebia que a dificuldade era imensa. Acredito que o trabalho feito com leitura compartilhada contribuiu para que desenvolvessem essa habilidade.
Profa Maria de Lourdes
Quando eu aprendi a ler, achava que era só olhar no papel e dizer o que estava escrito, mas quando a professora começou a ler junto com a gente fui percebendo que ler não era só aquilo que eu pensava. A gente precisa entender tudo que lê, e agora consigo entender.
Jennifer, aluna, 4a série A
No primeiro bimestre fiquei com média 5 em Português porque não conseguia entender o que era pra fazer, daí a professora me ensinou a ler, e nesse bimestre minha média foi 8. Acho que melhorei!
Leonardo, aluno, 4a série A
Meu aprendizado
O ato de ensinar me colocou no lugar de aprender. Além de ter compreendido melhor o papel das estratégias metodológicas e sua importância na formação de professores, aprendi a ler mais e melhor.
O exercício da leitura compartilhada me fez uma leitora mais competente. Aprendi a ler matérias
jornalísticas com mais proficiência porque passei a considerar com mais clareza o papel da manchete, do título, do subtítulo, da legenda, da foto, do infográfico. Esse conjunto de índices me ajuda compreender melhor o texto. Além disso, me tornei uma leitora mais atenta e crítica. Aprendi muito disso planejando e realizando com os professores e alunos.
Minha visão de mundo foi ampliada pelo fato de que ler esse tipo de texto me permitiu o contato com os diferentes gêneros, assuntos diversos e veículos variados, com suas ideologias e pontos de vista.