SAMIRA F. DA SILVA MATIELE¹
COMPONENTES DE UM PROJETO DE MEMÓRIA ENTUSIASMAM ALUNOS E TRANSFORMAM POSITIVAMENTE SUA RELAÇÃO COM A APRENDIZAGEM
Quando me inteirei do programa Memória Local na Escola², confesso que pensei ser impossível dar conta de todas as etapas, não imaginei que poderia ser capaz de desenvolvê-lo com minha turma. Contudo, ao ler o material e ouvir como seria todo o processo, percebi que não poderia tirar dos alunos tal oportunidade.
Minha turma está no 5o ano, composta de crianças das comunidades próximas a Duque de Caxias (RJ). Algumas delas apresentam conflitos emocionais bem acentuados, o que dificulta a aprendizagem. Portanto, considerei que, ao se sentirem capazes de produzir um trabalho que pudesse ser visto por todos, isso teria significado na vida de cada uma dessas crianças. Ao voltar à escola, expliquei para a turma como seria o projeto. Acessei o site do Museu da Pessoa em meu computador e permiti que todos pudessem dar uma olhada nos trabalhos expostos e, para minha surpresa, elas ficaram muito empolgadas. Digo que fiquei surpresa porque minha maior dificuldade sempre foi despertar o entusiasmo nessas crianças. Eu comentava sempre nos Conselhos que nunca havia trabalhado com uma turma de 5o ano tão apática, mas naquele momento eu havia sido bombardeada por perguntas. A curiosidade e o entusiasmo estampados no rosto de cada criança me deram a certeza de que valeria a pena tentar. Mesmo com os prazos curtos, devido à nossa entrada tardia (quando minha escola foi convidada a participar do projeto ele já estava em andamento), e a preocupação com o volume de atividades em nossa escola, aceitamos o desafio.
A visibilidade da produção
Os alunos perceberam que fariam parte de algo que ultrapassaria os muros da escola e de sua comunidade, que escreveriam as memórias de alguém e dariam para essa pessoa um presente muito importante. Afinal, não é todo dia que temos nossa vida contada por crianças. Elas recolheriam histórias de vida de pessoas comuns, escreveriam textos, desenhariam o entrevistado e cenas de sua vida. Esse material seria transformado em livro, divulgado em exposição em local público da cidade e publicado no site do Museu da Pessoa. Decidimos, então, participar do projeto com o compromisso de fazer o melhor e considerando que, além das atividades do projeto, precisaríamos dar conta dos conteúdos e das atividades da nossa escola. Ressaltei que, a partir daquele momento, estaríamos assumindo um compromisso e, portanto, teríamos de ser responsáveis e organizados. Todos de acordo, mãos levantadas e a turma 503 decidiu participar.
1 Professora de Ensino Fundamental I da turma 503 na Escola Municipal José Camilo dos Santos da Rede Municipal de Duque
de Caxias (RJ).
2 Esse projeto, realizado pelo Museu da Pessoa e Instituto Avisa Lá, é uma ação de formação de professores para o registro da memória de comunidades, envolvendo os alunos na captação e na escrita das histórias dos moradores dos municípios por meio
da metodologia de registro da memória oral.
Desenhar para valer
A etapa dos desenhos foi uma revelação. Os alunos mantiveram excelente grau de atenção e de observação. A maioria da turma não demonstrava nenhuma insegurança para começar os desenhos; pelo contrário, queriam apenas saber se podiam usar mais folhas para aperfeiçoar os traços. A diretora Ana Cristina providenciou o material necessário: folhas de papel ofício, canetas hidrocor e lápis de cor de boa qualidade. Com o material à disposição a empolgação foi total. O aluno Philipe, que já tem um dom natural para o desenho, destacou-se ainda mais. Mas a grande surpresa foi o surgimento de novos talentos. Quando observavam os trabalhos dos colegas – a pintura firme, viva e o fundo colorido –, eram contagiados e percebiam que se os colegas conseguiam, eles também eram capazes. Eles procuravam se sentar em pequenos grupos e trocavam ideias sobre cores, detalhes e até mesmo capricho com o trabalho. Quando achavam que não estava muito bom o trabalho do amigo, faziam críticas, sem ofender, e incentivavam-no a recomeçar. Percebi também que os alunos com mais dificuldade para desenhar procuravam se aproximar dos que tinham mais facilidade. Assim, acabaram surgindo grupos novos e formando-se parcerias antes improváveis. Sempre me preocupei muito com a ordem de lugares, com o silêncio… Contudo, ao perceber que as trocas eram produtivas e que alunos que pouco falavam e que, até há pouco tempo, apresentavam baixo rendimento, estavam interagindo e trocando informações com os mais desenvoltos, achei melhor deixá-los à vontade.
Parcerias produtivas
Para explicar melhor, imagine aquele aluno nota 10 sendo ajudado, em desenho, por um colega que tem dificuldade em Matemática e Português! Pois bem, para minha surpresa, isso aconteceu, e as parcerias firmadas nos dias do projeto se estenderam para as demais aulas. Em outro momento, ao observar os pequenos enquanto resolviam problemas relacionados às frações, me dei conta de que vários alunos haviam mudado de lugar e, o melhor, auxiliavam-se mutuamente.
Para mim, também tem sido um aprendizado. Estou percebendo que nem sempre o burburinho atrapalha e que preciso educar o ouvido e o olhar para avaliar cada momento. Minha turma estava determinada a fazer o melhor. Vários alunos pediam para levar os desenhos para casa, pois desejavam mostrar aos pais; outros queriam “pintar mais forte”, frase que virou um mantra entre eles. Pintura forte deixa o desenho mais valorizado, mais bonito!
A turma 503 está mais unida, organizada, encantada com o próprio trabalho, tomada por aquele sentimento de dever cumprido, orgulho e convicção de ter feito um bom trabalho. Essa é a sensação que temos ao vermos o livro concluído, fruto de um trabalho muito prazeroso.
Organizar agrupamentos produtivos e promover a circulação dos saberes entre as crianças é sempre um desafio para os professores. Nesse relato de experiência da professora Samira, percebemos o potencial de trabalho com um projeto didático de memória no sentido de aproximar as crianças em torno de um propósito comum. Com o compromisso de escutar e contar a história de vida de uma pessoa escolhida pelo próprio grupo, as crianças se envolveram ativamente com as atividades de leitura, escrita e desenho. Esse engajamento significativo do grupo surpreendeu a professora, que passou a perceber com mais clareza as competências de cada criança, o que pode contribuir inclusive para o planejamento e desenvolvimento de outros projetos com a turma.
Cinthia Manzano, formadora do Instituto Avisa Lá.
Anexo
Por que memória local na escola?
♦ Cria a oportunidade de as crianças aprenderem por meio de uma abordagem criativa e coerente com a complexidade do mundo atual e sua nascente base tecnológica.
♦ Atribui à escola um nível de inserção na comunidade que vai além das tarefas tradicionais.
♦ Congrega vários agentes sociais para auxiliar na produção de um processo de aprendizagem contemporânea, real e efetiva.
♦ Usa a memória oral como fator de valorização pessoal e comunitária e como instrumento para o desenvolvimento da cidadania.
♦ Cria um produto final que dá visibilidade às ações de aprendizagem promovidas pela escola.
♦ Abre a possibilidade de aproximar ensino e aprendizagem da leitura e da escrita das práticas sociais reais existentes na sociedade.
♦ Cria conexões via internet dos alunos e professores com outros agentes em diferentes lugares do País e fora dele.
♦ Aprimora a prática pedagógica com vistas à maior aprendizagem dos alunos, proporcionando aos professores a oportunidade de resolver problemas práticos do ponto de vista didático.
♦ Aproveita o projeto para aprofundar o trabalho pedagógico desenvolvido nas escolas.