Aprender em grupo

O trabalho em grupo, na educação infantil, é uma prática bastante comum. No entanto, saber tirar proveito disso para potencializar as aprendizagens das crianças é algo que poucos professores dominam. Veja como crianças com diferentes hipóteses de escrita podem se ajudar quando trabalham juntas

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No ano de 2002, a rede municipal de São José dos Campos teve a oportunidade de oferecer o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA) a 85 professores de salas de nível IV (6 anos) da Educação Infantil. Os encontros de estudos despertaram interesse do grupo em aprofundar seus conhecimentos referentes à linguagem oral e escrita. Essas professoras tiveram também mais uma oportunidade: participar de sessões específicas de Horário de Trabalho Coletivo (HTC) para aprofundar os conhecimentos adquiridos e ajustá-los à prática existente em nossa rede, considerando as especificidades da educação infantil. Os encontros ocorreram todas as terças-feiras, durante três horas.

O grupo do qual fazia parte era composto por 24 professoras da Região Sul de São José dos Campos, e era orientado pelas formadoras Sandra Regina Santana de Siqueira Silva – orientadora pedagógica da EMEI Profa. Ângela de Castro Fernandes Lopes – e Lucimara Aparecida Santana – orientadora pedagógica da EMEI Torataro Takitani. Ao iniciar nossos estudos uma grande dúvida pairava sobre as professoras: como trabalhar com agrupamentos produtivos em atividades coletivas como sugeria o PROFA? Esse assunto foi levado para o grupo como proposta de estudo. Então, as formadoras sugeriram que nós, professoras, elaborássemos uma atividade para ser proposta em uma das salas. Nossa prática seria filmada e depois discutida.

Esta estratégia tem sido muito utilizada em nossa rede, como apoio às reuniões de professores. Segundo Regina Scarpa12, a tematização de situações práticas tem por objetivo criar nas professoras a disposição para refletirem, criticamente, sobre as suas próprias atuações e as de outras professoras, buscando, nos problemas que essas práticas apresentam, suas próprias soluções. Para nós, o principal objetivo da tematização era observar como as crianças podem se ajudar quando trabalham em grupo, na socialização de diferentes saberes.

Minha sala foi escolhida. Confesso que tive receio, pois o trabalho com a tematização da prática, como fora proposto, era novo para todas nós. Somava-se a isso o desafio de propor uma atividade coletiva de escrita de uma parlenda, considerando minhas hipóteses sobre os agrupamentos produtivos. Quantas coisas para pensar! O planejamento com certeza era o caminho para atingirmos tais objetivos. Embora a proposta fosse destinada ao meu grupo de crianças, todas as professoras participantes desse HTC colaboraram.

Planejamento: uma prática que faz a diferença

Dentro do trabalho com a linguagem oral e escrita que desenvolvo com minha turma, propus uma seqüência de atividades envolvendo a brincadeira com parlendas e cantigas de roda. A escolha desses dois tipos de textos tinha função de atender a algumas expectativas minhas enquanto professora:

  • ampliar o universo cultural das crianças;
  • por se tratar de uma brincadeira por excelência, as crianças memorizariam os textos com prazer;
  • a utilização destes textos, que são parte de um repertório tão apreciado e utilizado pelas crianças, é uma alternativa interessante para a realização de atividades de leitura e escrita cujo objetivo principalseja a reflexão sobre o funcionamento do sistema de escrita alfabético. Por se tratar de um texto memorizado pelas crianças, ele permite que elas centrem a atenção para compreender o “como se escreve” e não “o que se escreve”.

Nesse contexto, levei para a reunião seguinte a idéia da elaboração de mais uma atividade com parlenda. Nossa meta era planejar coletivamente uma atividade na qual todas nós, professoras, pudéssemos colocar em jogo tudo o que sabíamos e pensávamos sobre uma boa situação de aprendizagem. Elaboramos uma proposta de escrita a partir das letras móveis. Diante disso, tínhamos de:

  • confeccionar e organizar os materiais que seriam utilizados;
  • organizar os agrupamentos;
  • definir os papéis de cada um no grupo;
  • definir quais duplas seriam filmadas;
  • antecipar possíveis intervenções para essas duplas;
  • elaborar a descrição da atividade e possíveis questões para serem analisadas posteriormente, quando voltássemos a nos reunir.

Ao final do dia todas as idéias foram socializadas, e marcamos a data para a filmagem. No texto abaixo (ao final do artigo), descrevo a atividade.

Do plano à ação: o que aconteceu
Ao iniciar a proposta fiquei preocupada em atender a todos os grupos, pois se tratava de uma atividade coletiva. Após definir as duplas, as propostas e explicar a atividade, fiquei atenta às crianças. Durante a atividade circulei pela sala com a Sandra, minha formadora, e Gênifer, a professora auxiliar. A opção pela utilização de letras móveis foi uma ótima saída, pois deu às crianças oportunidade de refletir somente o como se escreve, que é o mais importante, sem aborrecê-las com a grafia ou o traçado das letras, que não significam, em si, conhecimentos tão relevantes sobre nosso sistema de escrita. Notei que esse material apoiou muito mais as discussões nas duplas do que se tivesse pedido que escrevessem com lápis e papel, embora considere que em outros momentos isso seja importante.

Matheus de Lima e Mateus da Silva me chamaram para mostrar suas escritas. Pedi que lessem para mim e questionei quanto ao modo como eles escreveram o final do verso Corre-Cotia, que, para eles, terminava com a letra “B”. Imediatamente Matheus de Lima retirou a letra, lendo novamente e concluindo a escrita. Acompanhei Eduardo e Eloí, ajudando a solucionar a atividade, e surpreendi-me com a dificuldade dessa dupla, visto que um escrevia com uma hipótese silábica alfabética e o outro já com escrita alfabética. Como receberam as letras justas para escrever LENCINHO BRANCO CAIU NO CHÃO, não conseguiram utilizar todas as letras (restaram no caso as letras: N H C e R), e a escrita ficou assim: LECINO BANCO.

No momento da intervenção questionei por que tinham sobrado letras, visto que o combinado era utilizar todas. Então pedi que a dupla localizasse a palavra LENCINHO. Eles o fizeram e solicitei que lessem o que escreveram, observei que liam LENCINHO onde estava escrito LENCINO. Nesse momento lembrei à dupla sobre o combinado de que não podiam sobrar letras, e fiz a seguinte pergunta: será que uma dessas letras que está sobrando não seria da palavra LENCINHO? Sugeri que se lembrassem da escrita dos nomes de Letícia e Leonardo, colegas da classe, para que atentassem sobre a diferença de LEN e LE; não obtive sucesso. Porém, quando questionei o NHO, as crianças conseguiram reelaborar sua escrita, pois se apoiaram na escrita de palavras conhecidas, como NARIZINHO e PEDRINHO, já que estávamos desenvolvendo o projeto:“As biografias dos personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo.”

Gabriela demonstrou timidez e Nicole, que possui hipótese silábica alfabética, tomou a iniciativa de fazer sozinha, pois ficou intrigada com outras questões que não interessavam a Gabriela no momento. Ao finalizar a filmagem percebi que Sandra e Gênifer, curiosas que estavam, também fizeram intervenções em outros agrupamentos: pediram que as crianças lessem o que haviam escrito, às vezes perguntaram se não faltavam letras ou, ainda, se a letra escolhida era adequada para a escrita em questão, chamando a atenção, principalmente, para a letra inicial e final de suas escritas.

Apesar de todo o meu esforço, ao terminar a filmagem notei que minha atenção ficou bastante centrada na dupla de crianças que pensava a escrita de modo silábico alfabético e alfabético. Estava tão curiosa em observar a conversa de Eduardo e Eloí que não vi o tempo passar. Mas isso não é tão importante. Após assistir ao vídeo, pude perceber que, mesmo sem as minhas intervenções, as duplas resolveram a proposta trocando idéias e solucionando os desafios.

No trabalho em grupo as crianças também se apóiam e ensinam o que sabem umas às outras, não ficando tão dependentes da presença da professora. Mesmo assim, nas próximas atividades revezarei minha atenção com as demais crianças para ampliar a avaliação do todo. Farei observações específicas no grupo dos pré-silábicos e, consecutivamente, nos demais níveis, registrando e observando o desempenho dos diferentes agrupamentos. Avalio também que as atividades que vinha propondo para verificar o desempenho das duplas contribuíram para os avanços de Nicole, que já é alfabética, de Rodolpho e de Letícia, que também estão quase alfabéticos, e das crianças com hipóteses pré-silábicas de escrita, que depois dessa atividade começaram a considerar o critério de qualidade e quantidade na escolha das letras para escrever.

Para a próxima atividade de escrita preciso reestruturar as duplas que estão mais avançadas na conquista da compreensão do sistema alfabético e investir mais junto às crianças que precisam de mais tempo e outros desafios para pensar sobre como se escreve. Minimizar a ansiedade e a expectativa em relação ao desempenho das crianças também é algo que vai me ajudar.

Minha reflexão hoje, 6 meses depois dessa atividade
Avaliando a prática de trabalhar com agrupamentos produtivos, noto o quanto as crianças avançaram em suas hipóteses de escrita durante o ano. Em relação aos receios que relatei no início deste texto, vejo o quanto me sinto mais segura para desenvolver esse trabalho. Foi importante refletir e discutir questões do planejamento através da tematização da minha prática, nesse grupo do qual fiz parte com minhas colegas. O grupo de HTC me possibilitou ser, hoje, uma profissional que realmente acredita no trabalho com agrupamentos produtivos em atividades coletivas e que vê na elaboração do planejamento um instrumento que ajuda a aprimorar a prática.

Muitas coisas são modificadas no momento da ação, tornando os planos um pouco diferentes – pois processos de ensino e de aprendizagem são relacionais e por isso não podem ser totalmente antecipados –, mas, ainda assim, o exercício de planejar nos faz pensar nas crianças, nas suas potencialidades e nos desafios que podem ser mais interessantes para elas, o que assegura a qualidade da proposta. Atividades como essa são propostas na sala de acordo com o planejamento, sempre com o objetivo de propiciar às crianças um momento de reflexão sobre a escrita, utilizando, para isso, textos que estavam sendo trabalhados nos projetos oferecidos para o grupo.

No segundo semestre as crianças continuaram enfrentando desafios parecidos em um projeto envolvendo, entre outros conhecimentos, a linguagem dos quadrinhos da turma da Mônica, de Maurício de Souza. Vale notar, ainda, que esse projeto só foi possível e fez sentido porque tínhamos uma turma de 6 anos muito atenta, interessada em aprender a ler e escrever. O resultado é fruto de um amplo trabalho: a Educação Infantil da rede municipal de São José dos Campos tem uma preocupação com a alfabetização. Essas crianças tiveram acesso às práticas de leitura e escrita nos anos anteriores e no início do ano. Em minha sala, houve a oportunidade de um trabalho de leitura e escrita a partir do nome próprio, da lista de nomes da sala, escuta e apreciação de textos de diversos gêneros nas rodas de história e outras seqüências de atividades a partir desses textos, ora com olhar para a leitura, ora para a escrita, que propiciou muitos avanços. Por isso, é de se esperar que continuem avançando: elas querem aprender e a rede investe nisso, pois considera um direito de todas as crianças o acesso à cultura escrita – e não só àquelas que freqüentam escolas particulares, o que faria da escola de educação infantil pública uma instituição mantenedora das desigualdades sócioculturais do nosso país.

(Glória Kimiko Sugano, professora da EMEI Prof. Arlindo Caetano Filho – vide ficha técnica)

1Era Assim agora não… uma proposta de professores leigos. Regina Scarpa. Ed. Casa do Psicólogo.

Projeto

Escrita de uma parlenda: Corre-Cotia (com letras móveis)
Duração da atividade: aproximadamente 20 minutos
Professora referência: Glorinha
Nível: infantil IV – 26 alunos
Escola: EMEI Prof.Arlindo Caetano Filho

Objetivos:

  • Ajudar as crianças a refletir sobre o sistema de escrita por meio da interação com colegas.
  • Criar uma situação na qual se faça necessário pensar sobre o ajuste entre o falado e o escrito.
  • Promover oportunidade para refletir sobre questões ortográficas no caso das duplas de crianças alfabéticas.

Desafios propostos:

  • Escolher quantas e quais letras colocar.
  • Refletir sobre suas escolhas ao escrever, de modo a justificar a escrita.
  • Utilizar todas as letras oferecidas (letras justas2, para alfabéticos e silábicos alfabéticos).
  • Negociar a escrita com o parceiro.

Procedimentos didáticos:

  • Garantir que todas as crianças saibam o texto de memória, no caso o texto da brincadeira Corre-Cotia.
  • Organizar agrupamentos de acordo com o conhecimento que as crianças dispõem sobre o sistema de escrita, considerando, ainda, as afinidades e as características pessoais.
  • Garantir que os versos da parlenda que serão escritos pelas duplas sejam realmente desafiadores do ponto de vista das hipóteses das crianças sobre o sistema de escrita.
  • Definir os papéis nas duplas, ou seja, o papel de cada criança: um escreve e o outro dita, ou ainda, a negociação da escrita, de modo que uma criança coloque uma letra, justifique sua escolha lendo o verso da qual faz parte, passando, então, a vez para o seu parceiro. Preparar e ou verificar se há quantidade suficiente de letras móveis para todos os grupos escreverem;
  • Verificar se todas as crianças entenderam a proposta;
  • Antecipar possíveis intervenções.
  • Retirar do mural da sala o escrito da parlenda Corre-Cotia, evitando que as crianças apenas copiem e não pensem sobre o que estão escrevendo.

Procedimentos esperados das crianças:

  • Saibam o texto de memória.
  • Entendam a consigna.
  • Percebam e respeitem o papel de cada um na dupla.
  • Saibam negociar com o colega suas opções.

Desafios propostos a cada agrupamento:
1º GRUPO: Crianças com hipóteses de escrita silábica alfabética e alfabética
(Eduardo e Eloí).
Proposta: negociar em grupo um modo de escrever com letras móveis (oferecidas apenas as letras que compõem as palavras) o seguinte verso: LENCINHO BRANCO CAIU NO CHÃO

2º GRUPO: Crianças com hipóteses de escrita silábica alfabética e silábica com valor sonoro (Letícia e Kelly, Isabelle e Bruna, Igor e Rafael, Nicole e Gabriela, Rodolpho e Mônica).
Proposta: negociar em grupo um modo de escrever com letras móveis (oferecidas apenas as letras que compõem as palavras) o seguinte verso: MOÇA BONITA DO MEU CORAÇÃO

3º GRUPO: Crianças com hipóteses de escrita silábica com valor sonoro e silábica sem valor sonoro (Matheus de Lima e Mateus da Silva, Matheus Luis e Caroline, Isabela e Christine, Henrika e Joyce).
Proposta: negociar em grupo um modo de escrever, a partir do conjunto das letras móveis variadas, não apenas as do verso: CORRE- CIPÓ

4º GRUPO: Crianças com hipóteses de escrita pré-silábica e silábica com valor sonoro (Leonardo e Guilherme,Nilton e Juliano,Andreza e Cynthia).
Proposta: negociar em grupo um modo de escrever, a partir do conjunto das letras móveis variadas, não apenas as do verso: CORRE-COTIA

Possíveis intervenções do professor:

  • Dar referência de escritas de palavras conhecidas pelas crianças, tais como o nome próprio e os nomes dos colegas, para ajudar a achar as letras necessárias.
  • Ouvir atentamente as argumentações das crianças e intervir de forma adequada, apoiando seus pensamentos.

2Letras usadas para formar as frases, não há letras a mais ou diferentes.

Ficha Técnica

Equipe: Glória Kimiko, Sandra Regina de S. Silva, Lucimara Aparecida Santana.

Secretaria Municipal de Educação de São José dos Campos – Rua Felício Savastano, 240 – Vila Industrial – CEP 12220-270 – São José dos Campos – SP – Tel.: (12) 3901-2167
Site: http://www.sjc.sp.gov.br/html/sec_se1.htm
E-mail: cpeinfantil@bol.com.br

EMEI Prof.Arlindo Caetano Filho – Rua Valdemir de Oliveira, 42 – cj 31 de março – CEP 12237-200 – São José dos Campos – SP – Tel.: (12) 3931-1684

Glória Kimiko Sugano
Tel.: (12) 3931-1684
E-mail: gloriakimiko@hotmail.com

Bibliografia

  • Era assim, agora não, uma proposta de formação de professores leigos. Regina Scarpa. Ed. Casa do Psicólogo. Tel.: (11) 3034-3600. Site:www.casapsicologo.com.br, e-mail: casadopsicologo@casadopsicologo.com.br
  • A psicogênese da língua escrita. Emília Ferreiro – Ana Teberosky. Artmed Editora.Tel.: 0800 – 703 3444. Site:www.artmed.com.br
  • Programa de Formação de Alfabetizadores – MEC 2001 – PROFA módulo I. Unidade 4 M2U4T11– Contribuições à prática pedagógica – hipóteses de leitura.
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