Quando a Educação Física vira brincadeira do corpo

Novos princípios e atividades ajudam a reinventar a prática tradicional da educação física. O brincar, o conhecimento do corpo e do espaço passam a ser os conteúdos em ação

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A Educação Física, durante muitos anos, sofreu a influência de várias linhas de pensamento e de abordagens diversas. Já foi instrumento de formação militarista, da homogenia e da instituição de um padrão do movimento. Caracterizou-se também, em muitos casos, como uma área que buscava um indivíduo com grande capacidade e performance atlética. Por muito tempo, preteriu indivíduos “menos hábeis” em detrimento de perfis mais promissores.

Porém, nos últimos tempos, a Educação Física na escola vem buscando um novo caráter de atuação, repensando seus princípios e alinhando novos objetivos a serem desenvolvidos. Falamos de uma Educação Física que privilegia o indivíduo e suas capacidades, que pode enxergar em cada um competências motoras e conhecimentos; que reconhece a importância da diversidade dentro do grupo como fator gerador de novos conhecimentos para todos os seus integrantes; e que pode aceitar que diferentes indivíduos cheguem de formas diversas, e a seu tempo, nas expectativas de aprendizagem traçadas.

Novos princípios
A Educação Física que queremos e que fazemos agora está pautada nos seguintes princípios: respeita as diferenças, busca formar indivíduos conhecedores de suas possibilidades e competências motoras e estabelecer as relações de saúde, cultura e sociedade. Por fim, procuramos trabalhar conhecimento corporal, lúdico/esportivo, ampliando os saberes sobre jogos culturalmente aprendidos, resgatando o universo das brincadeiras tradicionais infantis, ampliando o leque de atividades socioculturais e propiciando autonomia tanto nas atividades práticas como nas modalidades desportivas.

Durante muito tempo conversávamos dentro da escola sobre a necessidade de encontrar um novo caminho para as aulas de Educação Física. Esta demanda surgiu, principalmente, das observações e avaliações da prática dos alunos. Por mais que tentássemos inovar, tendíamos a elaborar aulas diretivas, com estratégias que priorizavam a repetição das ações e tendo como indicador os padrões de movimento. Os jogos e brincadeiras utilizados entravam como estratégia para o desenvolvimento de alguns conteúdos. Sentíamos a necessidade de romper com esta forma e buscar novos caminhos.
Ensaiamos alguns passos e fizemos várias alterações no documento curricular nos apoiando nos Referenciais1 e em autores que propunham uma prática voltada para o brincar. Mesmo assim percebíamos que alguns pontos da prática e das escolhas teóricas ficavam a desejar.

Metas e foco
Diante dessa situação que nos causava um incomodo, buscamos ajuda por meio de uma consultoria especializada. Nos primeiros encontros traçamos duas metas de trabalho:

  • Revisão crítica do nosso documento curricular da área de Educação Física, registrando principalmente as dissonâncias entre a prática e a teoria, buscando aproximá-lo dos princípios da instituição e das propostas elaboradas no RCNEI.
  • Uma ação mais direta e imediata: a mudança significativa da linguagem adotada para o trabalho de Educação Física na Educação Infantil. Relacionar os conteúdos específicos da área a uma proposta inovadora que colocasse o brincar, o conhecimento do corpo e do espaço como os grandes conteúdos a serem trabalhados. Também reformulamos as estratégias, visando à exploração do espaço, a descoberta do próprio corpo, a exploração do objeto com diferentes significados dentro do jogo, além da socialização dos saberes de cada um. Dessa maneira, foi fundamental garantir o espaço do jogo e da brincadeira durante as aulas.

Traçadas estas metas de trabalho, fizemos um recorte para que pudéssemos fazer uma intervenção imediata nas aulas da Educação Infantil. Os professores focaram seus estudos no desenvolvimento de uma proposta de trabalho para as crianças do Grupo 22. Fizemos uma análise detalhada do currículo da área, procurando identificar, através das abordagens e dos processos pedagógicos, quais eram os pontos fortes da proposta e quais mereceriam ser reformulados. Toda esta análise se deu a partir de observações de nossas práticas, durante as aulas de Educação Física. A formulação de um planejamento com foco no desenvolvimento psicomotor e nos conteúdos pautados nas habilidades motoras não trazia, na prática, estratégias significativas para o grupo. A grande pergunta era: como atrelar os conteúdos específicos da área a propostas motivantes e desafiadoras para a criança?

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A proposta surge a partir do ambiente e dos objetos colocados nele

Começar a agir
Começamos a desenvolver uma nova proposta de trabalho que partia dos seguintes pontos:

  • Utilizar as inúmeras possibilidades de movimento e de inter-relação geradas pelas brincadeiras de construção, pelas brincadeiras com regras e as simbólicas;
  • Os conteúdos da área seriam propostos segundo as possibilidades geradas pelo meio e pelo conhecimento da criança;
  • O espaço e o objeto funcionariam como facilitadores da prática;
  • O professor atuaria como mediador das possibilidades do movimento.

Estruturados os princípios, planejamos as aulas. Veja um exemplo:

Objetivos:

  • Desenvolver as habilidades de locomoção, combinando as ações.

Conteúdos:

  • Exploração de gestos e movimentos;
  • Elaboração de seqüências de ação;
  • Imitação de ações que representam pessoas, personagens ou animais.


Estratégias:

  • Elaboração de ambientes com diferentes tipos de material, panos, caixas de madeira, escorregador, proporcionando que a criança explore e descubra formas de movimento;
  • Sugerir e incentivar a transformação deste ambiente a partir das idéias das crianças, criando novas formas de exploração e descoberta;
  • Investir nas ações das crianças, favorecendo as brincadeiras de construção e do jogo simbólico.

Recriar o ambiente
A primeira grande mudança se deu na estruturação física do espaço, e a proposta passou a surgir a partir do ambiente e dos objetos colocados nele. Obviamente, na estruturação do ambiente existe uma intencionalidade que favorece o trabalho de determinadas habilidades motoras que serão a ênfase da aula. A idéia era que o espaço fosse montado previamente, dando oportunidade para a criança criar suas brincadeiras. Em uma das aulas, as crianças, ao chegarem, se depararam com vários panos pendurados, sendo que um deles era bem grande e estava esticado de um lado para o outro da sala. Imediatamente se propuseram a explorar e descobrir as possibilidades que aquele espaço lhes proporcionava.

O pano grande que havia sido esticado não demorou para se transformar em um barco onde todos entraram, alguns sentaram, outros deitavam em cima e puxavam os panos para se esconder, enquanto alguns pulavam para dentro e para fora. O importante é o fato de que a criança passa a fazer parte integralmente da construção do ambiente, modificando os espaços e transformando a funcionalidade de cada objeto. Neste momento, os jogos de construção e os jogos simbólicos são os alicerces da proposta, proporcionando às crianças uma prática significativa do ponto de vista do brincar.

Tomamos por base a concepção do brincar como meio numa construção do conhecimento. Tanto é que logo em seguida ao surgimento do barco, surgiu a cabana criada por eles, e todos se esconderam dentro dela.

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Os panos da cabana se transformam em cipós ou num barco

Aumentar o desafio
A nossa proposta era manter a estrutura inicial e introduzir novos materiais. O interessante foi observar que certos objetos, como o “barco”, permaneceram durante todas as aulas, e outros foram reinventados. O pano da cabana, por exemplo, se transformou em cipós. A cada objeto colocado, ampliavam-se as possibilidades de movimento. Quando colocamos as caixas de papelão, estas foram usadas como lugares para entrar e se esconder. Depois, viraram carros.

Durante as aulas, as intervenções feitas tinham como principal objetivo ampliar o grau de dificuldade, sugerindo um maior desafio na ação. Muitas vezes valorizávamos a ação de algumas crianças, apontando para o grupo o que ela estava fazendo:

– Olha, que bacana! Ele está pendurado e balançando!

Outras vezes perguntávamos o que estava acontecendo, e uma criança dizia:

– A gente tá dentro do barco.

Ou, alguém coberto por um pano, dizia:

– Eu sou o fantasma.

Bola dentro
Com este novo olhar, conseguimos estruturar uma proposta que dava conta de algumas questões que julgávamos serem as grandes lacunas nas aulas para o trabalho com as crianças do Grupo 2. A primeira delas estava em elaborar estratégias significativas e contextualizadas para a faixa etária, fazendo com que a criança interagisse com o meio e com o outro, gerando movimento e, portanto, aprendizagem. A outra, se referia a garantir a prática da criança partindo de seus conhecimentos prévios, de suas competências.

A motivação que as crianças passaram a trazer nos momentos de Educação Física, a curiosidade sobre cada ambiente montado e, principalmente, a intervenção que cada uma delas passou a fazer no espaço, enriqueceram as brincadeiras propostas e outras tantas inventadas por elas. A solicitação das crianças para que montássemos de novo o barco, a cabana, o balanço e o castelo reforçaram o sentimento acerca do acerto da proposta.

(Prof. Luiz Eduardo Grecco, coordenador de Educação Física e professor de Educação Infantil da Escola Projeto Vida, na cidade de São Paulo – SP)

1Referenciais Curriculares Nacionais – RCNEI – documento que se constitui a partir das concepções de criança, infância e educação, oferecendo diretrizes curriculares a todos que atuam na área de Educação Infantil. Volumes disponíveis no site: www.mec.gov.br
2Crianças de 2 anos de idade.

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Caixas de papelão viram castelos ou túneis e sugerem um maior desafio na ação

Ficha técnica

Escola Projeto Vida
Rua Sóror Angélica, 364 – Jd. São Bento – São Paulo – SP. CEP: 02535-000 – Tel.: (11) 6236-1459 / 6236-8345 – Site: www.projetovida.com.br
Coordenadora pedagógica: Débora Rana
Educador: Prof. Luiz Eduardo Grecco
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