Discurso escrito refinado

A reescrita de contos tradicionais amplia o repertório linguístico de crianças de educação infantil
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Desenhos feitos pelas crianças da Escola Global Me Bilingual School, de São Paulo – SP

Colocar as crianças de pré-escola em contato com diferentes gêneros textuais e desenvolver nelas o gosto pela leitura são tarefas da instituição escolar. As narrativas, tradicionalmente, sempre tiveram espaço marcado na Educação Infantil. Por proporcionarem momentos prazerosos ao serem lidas pelos professores, favorecem o envolvimento e a aproximação de todos com a linguagem escrita. Para a professora de linguística da Uni versi dade de Barcelona, Liliana Tolchinsky Landsmann, “quando começam a frequentar a escola, meninos e meninas já desenvolveram esquemas que lhes per mitem compreender e produzir histórias que influem na memorização dos acontecimentos relatados e na complementação que fazem de relatos. Vários autores chegam a afirmar que a organização narrativa é a metáfora orientadora pela qual os fenômenos podem ser compreendidos em quase todas as idades e culturas”.

Além de favorecer a compreensão do mundo, atividades com leitura favorecem o contato com as comunidades nas quais os pequenos estão inseridos. Dentre os textos, os contos de fadas estimulam o ingresso no universo encantado. Quando o educador diz: “Era uma vez…”, a garotada se transporta para um tempo especial e mágico que a leva também a viver o papel do herói, do príncipe, da heroína e da princesa. Os procedimentos envolvidos de leitor, que serão consolidados ao longo de toda a escolaridade, iniciam-se a partir das tramas apresentadas, do suspense que se instaura, da alegria e da magia que contagiam. A educadora argentina Delia Lerner defende que “os comportamentos do leitor e do escritor são conteúdos – e não tarefas, como se poderia acreditar – porque são aspectos do que se espera que os alunos aprendam, porque se fazem presentes na sala de aula, precisamente para que os estudantes se apropriem deles e possam pô-los em ação no futuro, como praticantes da leitura e da escrita”.

Pensados assim, os procedimentos tomam outra forma em sala. Precisam de contextos letrados para se fazerem presentes e de momentos marcados pelo significativo para que aconteçam de maneira a serem necessários. Os projetos são a modalidade organizativa que provoca situações de uso real da língua. Neles, todas as ações estão voltadas a um produto final compartilhado entre os envolvidos. A sua elaboração exige direta ou indiretamente o uso da leitura e da escrita para lograr seus objetivos comunicativos. Conhecer os destinatários e saber a finalidade do que será produzido é primordial para que a participação seja coletiva. Socializar esses processos e levar as crianças a conhecerem todas as etapas beneficia o desenvolvimento do trabalho, pois exige envolvimento efetivo delas.
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Finais inusitados
No início de 2008, as crianças do G5 da Global Me (5 anos de idade) demonstraram grande interesse em ouvir algumas versões de contos de fadas que se aproximavam das originais. Saber que Chapeuzinho Vermelho é devorada pelo lobo ou que a madrasta da Branca de Neve teve de calçar sapatos de ferro incandescentes trouxeram espanto e curiosidade para os momentos de leitura. Ao descobrirem tantos novos (ou velhos) desfechos para as narrativas que já conheciam, todas ficaram motivadas para socializar essas versões com outras pessoas, justificando que ninguém sabia disso. Incentivadas pela professora, pensaram coletivamente em reescrever as histórias. Ficou acertado que a coletânea seria o produto final do projeto. Para que avançassem ainda mais em seus discursos escritos, foi proposto que as reescritas fossem produzidas em duplas. Essa estratégia tinha por objetivo socializar conhecimentos, estimular a ar gumentação no confronto de idéias e o debate pela busca do melhor meio de produção. Os pares foram, aos poucos, valorizando os trabalhos alheios, cooperando entre si e trocando saberes harmoniosa e assertivamente.

O trabalho foi organizado para desenvolver conteúdos específicos a cada etapa. A primeira foi repertoriar o grupo para que conhecesse algumas versões originais. Para isso, foram escolhidos livros que tivessem um discurso mais elaborado, mais fiéis aos escritos originais e que ampliassem o repertório linguístico. Duas vezes por semana, as rodas de leitura eram destinadas a esse propósito. Sempre após a narração realizada pela professora, havia uma conversa para que eles tentassem estabelecer relações de igualdade e diferença entre a versão lida e a que já conheciam. Era comum, ao final, ouvir de alguém da turma: “Qual será a próxima? Qual vamos ler amanhã?”. O fervor da curiosidade era crescente e o envolvimento e encantamento, geral.

O gosto pela leitura estava instaurado, e os comportamentos leitores foram se aprimorando a cada história. Antecipar alguns fatos da trama, verificar se essas previsões se confirmavam, apreciar os detalhes das ilustrações e inferir sobre vocabulários novos foram alguns dos comportamentos estimulados e incorporados.
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Atenção aos detalhes
Para que se aprofundassem nos detalhes das descrições, a segunda etapa proposta foi a confecção de uma galeria de personagens. Nela, as crianças, organizadas em duplas, escolheram uma personagem para descrever tendo a professora como escriba. Era necessário resgatar de memória as características presentes no texto e ainda ordenar o discurso escrito. O desafio era relatar com o maior número de detalhes, sem revelar o nome, para que o leitor descobrisse a figura a que se referiam.

Os marcadores temporais sempre auxiliam na coesão da narrativa. São eles que indicam quando os fatos aconteceram, a sequência cronológica e a continuidade. Para proporcionar uma escrita mais elaborada, foi necessário anotar em uma lista de todos os encontrados. Os pequenos perceberam que nem sempre as histórias iniciam com “Era uma vez…”, mas têm diversas maneiras para marcar o tempo. A linguagem peculiar desse gênero é marcada por um vocabulário característico, que nem sempre faz parte do que é usado no cotidiano. Para que a turma se apropriasse dessas palavras e as utilizasse em suas reescritas, alguns contos foram relidos com o desafio de desvendar o significado dos termos desconhecidos. Sempre que aparecia uma palavra como “lavrador”, “ébano” ou “moleiro”, as crianças logo a apontavam. A descoberta dos significados era pautada no conhecimento prévio, e quando ele não era suficiente, recorriam ao dicionário. O registro dessa fase foi exposto num painel batizado de Mural das palavras incríveis.

Contos maravilhosos
Nesse momento, era necessário escolher, dentre as possibilidades reveladas pela professora, um conto para reescrever. Cada um escolheu seu preferido e, de acordo com esse critério, formaram-se as duplas de trabalho. Para a reescrita, os pares contavam com a professora como escriba, que teve a preocupação de digitar tudo na presença das crianças. Esse detalhe foi cuidadosamente planejado para que a editoração fosse, de fato, acompanhada por elas, e que quando vissem o livro pronto não se sentissem à parte do processo. A todo o momento, o Mural das palavras incríveis foi relembrado e utilizado no discurso, os marcadores temporais também foram resgatados, assim como as descrições dos personagens estiveram presentes com muitos detalhes.

Após cada produção, os textos eram revisados coletivamente em uma roda de conversa. A professora lia e todos podiam melhorar os escritos do outro, usando termos mais apropriados e sugerindo uma linguagem mais elaborada, de acordo com o julgamento deles. Os conflitos eram frequentes e o combinado era que a dupla autora tinha o direito de aceitar ou não as sugestões. Essas discussões, muitas vezes acaloradas, proporcionaram momentos riquíssimos de reflexão sobre a língua. Era comum ouvir justificativas que se remetiam aos textos originais para fazer valer as opiniões. Também eram frequentes as sugestões de trocas de substantivos por pronomes, para que o texto não ficasse repetitivo. Expressões da linguagem oral também eram substituídas por palavras mais apropriadas à escrita, e as estruturas das frases foram modificadas para que o leitor as entendesse melhor.
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Depois da produção escrita, o desafio foi observar nos livros outros aspectos a serem lembrados para a editoração, como a capa, a dedicatória, o índice e as ilustrações. Em grupo, os pequenos decidiram usar colagens de diversos materiais e complementar com os desenhos de própria autoria. A decisão de quais elementos seriam representados também estimulou um grande exercício de síntese. Algumas crianças queriam acrescentar muitos detalhes e personagens nas imagens. A discussão do grupo girava em torno do que era mais importante para representar a história, já que não era possível apenas uma ilustração por conto.

A ideia de capa sugerida pela professora foi aprovada por todos. Nela, a foto de cada criança aparecia em uma folha transparente e cada uma complementava com desenhos. Além do índice e da dedicatória, foi decidido incluir um agradecimento especial. O lançamento da publicação e a manhã de autógrafos foram muito comemorados por todos, assim como pelos pais e também pela comunidade escolar, que teve a oportunidade de apreciá-lo no Festival do Livro.

(Paula Godoy Sant’anna, coordenadora pedagógica de língua portuguesa da Escola Global Me Bilingual School, em São Paulo – SP e Alessandra Felix, professora de língua portuguesa do G5 – crianças de 5 anos)

Ficha técnica

Escola Global Me Bilingual School – Endereço: Rua Colômbia, 66 – Jardins – São Paulo – SP. CEP: 01438-000 – Tel: (11) 3085-9662 / 3065-2440
Diretoras: Renata Sá Freire Melles e Rose Vaiano
Coordenadora pedagógica de português: Paula Godoy Sant’Anna
Professora de português (G5): Alessandra Felix
E-mail: globalme@globalme.com.br – Site: www.globalme.com.br
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Para saber mais

Livros

  • Ler e escrever na escola – O real, o possível e o necessário, de Delia Lerner. Ed. Artmed. Tel.: 0800-703-3444.
  • Aprendizagem da linguagem escrita – Processos evolutivos e implicações didáticas, de Liliana Tolchinsky Landsmann. Ed. Ática. Tel.: (11) 3990-2100.
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