Mil e Uma Noites – uma aventura de faz de conta

Quando era professora, desenvolvi um projeto que procurava integrar o estudo sobre diferentes povos e o faz-de-conta da criança. Hoje, distanciada dessa experiência, aproveito este espaço para avaliar e refletir a respeito da relação lúdica que as crianças estabelecem com o conhecimento, procurando mostrar, por meio de minha experiência, como é possível alimentar suas brincadeiras e ao mesmo tempo apresentar a elas uma outra cultura



Penso que o aspecto lúdico de que tanto falamos não está presente somente nas brincadeiras, mas no jeito de a criança pensar e representar o que conhece. Por isso, foi um interessante desafio, como professora, conciliar a pesquisa sobre diferentes culturas e o faz-de-conta. Lecionava para crianças de 5 anos, para lá de especiais, e muito interessadas em conhecer o mundo. Ainda guardo na lembrança momentos significativos do trabalho com esse grupo.

Durante o desenvolvimento do projeto denominado As Mil e Uma Noites, as crianças transitavam ora pela realidade, ora pela fantasia, nas brincadeiras simbólicas alimentadas pelas informações e inspirações vindas do conhecimento sobre diferentes povos árabes. O casamento do estudo com o jogo resultou em uma parceria que deu certo.

Da literatura à realidade de um povo
Iniciamos o estudo sobre a cultura árabe com a leitura das Mil e Uma Noites. Eu lia ou contava quase que diariamente as histórias deste fabuloso legado cultural, que vem encantando diversas gerações e povoando a imaginação de muitos leitores. Interrompia a história, contada em capítulos, sempre numa parte interessante para dar continuidade no dia seguinte.

Em geral, essas histórias eram esperadas com grande entusiasmo pelas crianças, que desejavam saber como se desenrolava a trama. Aliás, o objetivo principal das histórias de Sherazade era manter o suspense para que ao dar continuidade à narrativa, ela pudesse salvar assim sua própria vida.

No início deste estudo, as crianças tinham a idéia de que os países árabes, mesmo na atualidade, eram repletos de palácios e oásis, tais como a referência que tinham do filme sobre Aladim. Para explorar mais o assunto, intercalamos as histórias de Sherazade com informações sobre lugares e povos árabes, cenários e personagens de boa parte das narrativas das Mil e Uma Noites.

Íamos coletando informações a respeito do mundo árabe, que congrega no total 22 países, por meio de livros, revistas de turismo, entrevistas com pessoas de origem árabe, filmes, músicas, obras de arte e da própria literatura. Qual não foi o espanto do grupo ao realizar uma entrevista com um imigrante libanês e saber que nos países árabes existe até McDonald’s.

Em um lanche muito especial as crianças conhecem alguns dos sabores da culinária árabe

Desse modo, as crianças descobriram que o mundo imaginário da literatura tem sólidas raízes na cultura que o gerou e, por mais fantástico que seja, está impregnado da história do lugar de origem: hábitos, paisagens, perfumes, essências, sabores etc.

Conhecer o diferente para respeitá-lo
Creio que o estudo de outra cultura é sempre muito intrigante para crianças de 5 anos, que estão numa fase em que as interações estão em primeiro plano. Conhecer diferentes pessoas e seus jeitos de viver é importante para quem está tratando de entender o mundo em que vive.

Além do que, um trabalho desse tipo permite à criança perceber que diferentes costumes e valores têm sua razão de ser em determinados contextos históricos e sociais. Dessa forma, podem ampliar sua visão sobre o mundo e aprender a respeitar tais diferenças. Em diversas situações podemos ver como as crianças num primeiro momento estranham o diferente, mas percebem a existência de outros valores e costumes.

Esse é um primeiro passo para entender a lógica do que é estranho a elas, como é o caso da polêmica gerada pela conversa que tivemos após vermos uma fotografia de beduínos fazendo suas refeições. A primeira reação foi de estranhamento:

– Que nojo! Comendo com as mãos! Fica tudo lambuzado! – dizia uma criança.

Sempre na perspectiva de encontrar contrapontos com nossa cultura, perguntei se comiam algum alimento com as mãos. Como resposta, várias possibilidades: sanduíches, brigadeiro, salgadinhos, pão, frutas, etc.

Conversamos então sobre a adequação de comer alguns alimentos sem os talheres, aliás grande parte dos pratos árabes dispensa talheres. Quando viram um prato de sopa na fotografia, brincaram:
– Que nojento! Já pensou tomar sopa com as mãos, assim ó – dizia uma outra criança, imitando com gestos.
– Vocês acham que eles tomam sopa dessa forma? – perguntei.
– Não né! – responderam todas. – É só pegar como os japoneses e tomar assim, fazendo o gesto de levar o prato até a boca.

Quando li para o grupo que os beduínos usavam apenas a mão direita para comer, porque limpavam suas necessidades com a esquerda, riram muito. Pontuei que era uma preocupação com a higiene em um lugar onde havia escassez de água. Nesses momentos muitos comentavam:

– Eu que não queria morar num deserto!

Até então acontecia o contrário, todos manifestavam seu desejo de conhecer e até morar no deserto, mas, quando as dificuldades apareciam claramente, mudavam de opinião.

Reconhecendo regularidades nos fenômenos sociais
Foi interessante também discutir as formas que os beduínos encontram para limpar as mãos: esfregá-las na areia ou então apanhar um punhado de areia e esfregar nas mãos.As crianças ficaram conjecturando, ainda, como faziam para escovar os dentes. Será que iriam desperdiçar água? Ou colocariam também areia na boca para a higiene?

Interessante relação: se usam a areia para as mãos, por que não substituir a pasta de dente pela areia? Disse que achava estranha essa possibilidade, e elas também concordaram que esfregar as mãos na areia era uma coisa e encher a boca de areia, como imaginaram, outra bem diferente.

No entanto, tivemos a informação de que no sertão brasileiro, até pouco tempo atrás, tinha-se o costume de esfregar um punhado de areia para “ariar” os dentes. Tirado o exagero de encher a boca de areia, as hipóteses das crianças tinham uma certa lógica, que eu mesma nem havia imaginado.

Tecidos, adereços e objetos típicos enriquecem o jogo de papéis entre as crianças

É curioso ver como o grupo foi percebendo que um modo de vida diferente do seu implica em outras relações com o meio. Ao ler uma legenda de fotografia que falava a respeito do costume dos beduínos de soltar o turbante e acender um incenso após a refeição, para perfumar suas barbas e cabelos, logo comentaram:

– É pra ficar cheiroso né! Também não tem chuveiro lá no deserto

Novas suposições apareceram: – Se não tem banheiro… Ih! Como eles fazem cocô? Na areia! – comentou uma criança, rindo.

As crianças realizavam inúmeras conexões com o que estavam aprendendo
em diferentes situações. Podiam inferir ou deduzir coisas a partir de alguns referenciais que já tinham, como no caso de uma situação na qual uma criança do grupo,olhando para as bandeiras do mapa-múndi de nossa sala, reconheceu que uma delas deveria ser dos árabes, pois tinha um sabre e escrita diferente (referia-se à bandeira da Arábia Saudita).

Nesses estudos, o mais importante não é acumular informações, mas sim estabelecer conexões, saber fazer relações a partir do que passam a conhecer.

O faz-de-conta enriquecido pelo estudo
Com tanta motivação, as crianças sugeriram que fizéssemos uma cabana como a dos beduínos no parque, para comermos um lanche. Assim fizemos um “lanche árabe” nas areias do pátio, com direito a tenda, tapete e muitas guloseimas dessa cultura. Entretanto, deixamos de lado a idéia de limpar as mãos com areia, pois não fazia sentido, já que tínhamos torneiras.

Na perspectiva de enriquecer o faz-de-conta, fomos transformando nossa classe em um ambiente lúdico,onde as crianças podiam brincar e as descobertas do trabalho passaram a fazer parte do dia-a-dia. A possibilidade de fazer e usar turbantes, ter tapetes “mágicos”, construir palácio, tendas, maquetes de deserto, fazer dromedário de sucata com uma estrutura para montar, confeccionar sabres etc., envolveu e motivou as crianças.

Foi positivo intercalar situações nas quais elas obtinham novas informações, refletiam sobre o que estavam aprendendo, faziam diferentes atividades, tais como: preparar receitas típicas, conhecer locais impregnados da cultura árabe, assistir a trechos selecionados de filmes sobre o tema, confeccionar materiais para a sala ficar parecida com um ambiente árabe.

O estudo ganhava corpo à medida que as crianças podiam brincar com o que aprendiam, ao mesmo tempo em que a própria brincadeira era enriquecida pelas novas informações que obtinham nos estudos. Impressionante, por exemplo, como a brincadeira com o dromedário, que já estava em nossa classe, ganhou vida depois que assistimos a um trecho do filme Lawrence da Arábia, que mostrava uma cena de tempestade de areia onde um dos personagens afunda em areia movediça.

As crianças perceberam que era fundamental ter um dromedário no deserto, depois que viram a cena na qual um beduíno, ao soltar-se da corda presa a seu dromedário, “afogou-se” em areia movediça. Já havíamos lido que os camelos eram especialistas nas trilhas do deserto, que tinham várias pálpebras à prova de qualquer tempestade de areia e que eram treinados para puxar os beduínos para fora, quando estes caíam em areia movediça.

Mas só com as imagens do filme tal informação se tornou significativa. Repetiam em suas brincadeiras situações de perigo, nas quais uma criança se jogava no chão, simulando estar em areia movediça, enquanto se agarrava à corda presa ao dromedário. Divertiram-se muito nesses momentos.

A ampliação das fontes de pesquisa

É importante ressaltar que aproveitávamos essas situações mais lúdicas para efetuar as pesquisas de imagem e texto, como é o caso da confecção dos sabres. O grupo foi até a biblioteca da escola investigar como eram essas armas, como eram decoradas, para depois fazer as suas próprias, segundo modelos pesquisados, usando tinta prateada e dourada, tal como manda o figurino! Assim, tínhamos sempre um motivo real para pesquisar.

Em uma outra ocasião, o grupo pôde entrevistar o pai de uma das crianças, que era descendente de libanês. Para tanto, elaboraram um roteiro de entrevista bastante alimentado por todos os conhecimentos adquiridos nas várias etapas do projeto. Apareceram questões muito interessantes como:

  1. Tem cidade e deserto no Líbano?
  2. Como escovar os dentes no deserto se lá não tem água?
  3. Faz muito calor no Líbano? Tem areia movediça? Você já pisou numa?
  4. Tem time de futebol no Líbano? Qual o esporte preferido dos libaneses?
  5. Jogam futebol, basquete ou voley?
  6. Como se vestem?
  7. Como são as festas de aniversário? Tem brigadeiro?
  8. Como é o dia das mães e das crianças? Tem dia dos velhos?
  9. Tem McDonald’s?
  10. Como é a festa de casamento?
  11. Como vocês comem? Vocês usam faca, colher ou garfo? O que comem?
  12. Do que as crianças brincam no Líbano? As crianças têm brinquedos como dinossauro, power rangers, barbie?
  13. Tem escola no Líbano? E uniforme?
  14. Como dormem? Tem cama?
  15. No Líbano tem palácio?
  16. Tem calendário? O número é igual ao nosso?
  17. Como comemora o ano-novo?
  18. Tem piquenique?
  19. Como são os restaurantes no Líbano?
  20. Você conhece a história das Mil e Uma Noites?
  21. Você já subiu num dromedário?
  22. Você usa sabre?
  23. O que você acha do Brasil? Você prefere morar no Brasil ou no Líbano?
  24. Os árabes desenham?
  25. Você pode contar até dez em árabe?
  26. Como se fala tchau em árabe?
  27. Os árabes tomam banho?
  28. Como fala bom dia em árabe?
  29. Os árabes rezam? Onde?
  30. Como se escreve “Grupo 5” em árabe?

Muitas das novas informações serviram imediatamente para ampliar o faz-de-conta que ficava, a cada dia, mais complexo.

Finalizando
Em projetos desse tipo há um casamento entre uma situação mais formal, oferecida pelo estudo, e uma situação informal, que a brincadeira e o pensamento imaginativo oferecem. Penso que é isso que torna a construção de conhecimento tão prazerosa e instigante para as crianças e seus professores. As crianças durante este estudo estiveram exercitando o que sabiam sobre ficção e realidade e ao mesmo tempo aproveitaram ao máximo brincando do que queriam.

(Adriana Klisys, Foi professora do grupo de 5 anos da Escola Logos. Hoje é formadora do Instituto Avisa lá)

Brincar na areia movediça de faz-de-conta é uma aventura divertida

Bibliografia

  • As Mil e Uma Noites. Ed. Brasiliense. Tel.: (11) 6198-1488.
  • Histórias das Mil e Uma Noites. Ruth Rocha. FTD.Tel.: (11) 3253-5011.
  • O Homem que Calculava. Malbatahan.
  • Abdulla . Coleção Todo o Mundo, vol. 4. Cristina Von. Ed. Callis.Tel.: (11) 3842-2066.
  • Povos do Passado – Os Árabes. Mokhatas Moktefi e Véronique Ageorges. Ed.Augustus.Tel.: (11) 5561-5306.
  • Revista Geográfica Universal: no 183, 246, 249. Ed. Abril.Tel.: (11) 3037-2000.
  • Revista Terra: no 3, 4, 9. Ed. Peixes. Tel.: (11) 3049-3149.
  • Os sete pilares da sabedoria.T.E Lawrence. Ed. Record.Tel.: (11) 3331-6760.
  • Uma História dos Povos Árabes. Albert Hourani. Ed. Companhia das Letras. Tel.: (11) 3167-0801.
  • Coleção Contos do Deserto. FTD.Tel.: (11) 3611-3055.

Filmes (trechos previamente selecionados)

  • Balão Branco
  • Simbad, o Marujo
  • O céu que nos protege
  • Lawrence da Arábia
  • O Homem que Sabia Demais (cenas de restaurante marroquino)
  • O Paciente Inglês
  • Gabeh

Contatos na cidade de São Paulo

  • Liga Cultural Árabe. Praça Getúlio Vargas,130 1o andar. Guarulhos. São Paulo. Tel.: (11) 209-4122.
  • Centro Cultural Sírio. R.Augusta, 1053.Tel.: (11) 259-4880.
  • Junta Islâmica.Tel.: (11) 414-3564.
  • Centro de Estudos Árabes – Fac. de Filosofia, Letras e Ciências Humanas –USP,Av. Prof. Luciano Gualberto, 403.Tel.: (11) 3091-4299.
  • Consulado do Líbano – Av. Paulista, 688, 16o andar.Tel.: (11) 288-2399.
  • Consulado da República Árabe-Síria – Av. Paulista, 326.Tel.: (11) 285-5578.
  • Consulado do Marrocos.Tel.: (11) 256-2146
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