Direto da prática: O que as instituições pensam e como se organizam para planejar

Para que se efetive um currículo apropriado é necessário planejar em dois níveis: num nível mais global, a equipe da creche ou pré-escola, compartilhando planos, decide critérios e metas para o trabalho de um ano. Num outro nível está o planejamento do professor, que se realiza por meio de projetos, seqüências de atividades e atividades permanentes. Veja, nas páginas seguintes, como duas instituições educativas conseguem articular esses dois níveis durante o ano letivo

Entrevistadas:

Sueli Aparecida de Campos Silva, coordenadora pedagógica da Creche Maria Stefano Maluf, mantida pela Associação Obra do Berço em convênio com a prefeitura. Atende a comunidade do bairro de Pedreira, em São Paulo.

Maria Virgínia Gastaldi, coordenadora pedagógica da Logos, escola particular no bairro de Pinheiros, em São Paulo.

Revista: Conteúdo e faixa etária: Existe um mínimo comum a todas as crianças?

Sueli: É mais importante pensar “o quê” e “como” do que “quanto”. Em 94, quando começamos a repensar nossa prática, sabíamos que o trabalho da creche não era só cuidado, mas não sabíamos quais conteúdos e como trabalhar com a educação. Tínhamos como referência uma realidade do passado, vinda de nossa experiência de magistério. Usávamos, por exemplo, calendário comemorativo e muito desenho mimeografado. Com a chegada do RCNEI, ganhamos um alicerce para trabalhar esse educar, que envolve o conhecimento de mundo e a formação pessoal e social. Hoje tentamos equilibrar diferentes conteúdos num dia. As brincadeiras, o jogo simbólico e o contato com diferentes portadores de textos são propostas garantidas a todas as turmas, desde o berçário, sempre adequado a cada faixa etária. Lá, por exemplo, as educadoras lêem para os bebês e conversam muito com eles. No jardim, com crianças maiores, a professora lê e conversa mas também trabalha com poesias, parlendas e outros textos mais dirigidos para o desenvolvimento da linguagem oral e escrita.

Virgínia: Existem conteúdos necessários e importantes para as crianças na educação infantil, definidos pelo RCNEI, que é o rientador da ação na escola. Mas, se nós planejamos para alunos específicos, é preciso considerar quais conteúdos serão fundamentais. Para tomar a decisão é necessário levar em conta a história do grupo de crianças, sua experiência. Isso aponta para os conteúdos que possibilitem àquele grupo estabelecer relações significativas com o conhecimento.
Um outro aspecto a ser considerado é a experiência e a condição de trabalho do professor do grupo. Valorizamos, em primeiro lugar, aquilo que o professor sabe e faz bem porque, do nosso ponto de vista, esse conhecimento é o carro- chefe da relação do professor com os alunos.

A escolha do conteúdo tem que considerar algo que encante também o professor ou o que ele ache que é adequado e interessante para as crianças, naquele momento. Sua decisão é referendada e acompanhada pela coordenação, que sempre planeja novas formas de ampliar a relação do professor com textos e leituras, para que se possam criar diferentes possibilidades de trabalho que atendam às necessidades que se criam com as crianças, no decorrer do ano. Há, certamente, um mínimo que são os objetivos, o norte de nossa ação. Sempre que vamos planejar, avaliamos qual ação nos leva àqueles objetivos. A construção da autonomia, por exemplo, está presente no trabalho para todas as idades. Pensamos, como critério, no máximo de autonomia possível a ser alcançado por cada sala. O professor que assumirá uma sala deve seguir a partir daí. Existe, certamente, um limite aos dois anos, aos três, etc., mas há que se considerar a possibilidade de cada grupo com cada professor. Também planejamos para que todas as crianças tenham acesso ao universo letrado. Dos quatro anos em diante, é necessário que comecem a pensar sobre o sistema notacional. A leitura e o trabalho de biblioteca já se firmaram na escola porque se mostraram estruturantes para se alcançar os objetivos de letramento. Cuidamos, desde os dois anos, da relação prazerosa das crianças com os textos, num contexto em que sejam tratadas, desde cedo, como leitoras.

Como organizar a continuidade dos conteúdos trabalhados para o ano seguinte?

Sueli Aparecida, Coordenadora de creche com as crianças

“As brincadeiras, o jogo simbólico e o contato com diferentes portadores são garantidos desde o breçário, sempre adequando a cada faixa etária”
(Sueli Aparecida de Campos Silva)

Sueli: Nós nos preocupamos com a continuidade. Quando vamos montar os módulos para o ano seguinte, garantimos uma reunião dos professores que vão receber a sala com os professores que tinham a responsabilidade daquelas crianças no ano anterior. Quando uma educadora faz a passagem para sua colega, contando tudo o que fez, como as crianças aprenderam, ela passa um conhecimento muito elaborado. Isso porque, durante o ano anterior, nas reuniões semanais de planejamento com a coordenação pedagógica, ela fez muitos ajustes, transformando a realidade. Com essa troca a professora pode estabelecer relações que ajudam a pensar uma continuidade, a estabelecer quais são os conteúdos a serem desenvolvidos para que o avanço daquele grupo seja garantido.

Virgínia: É preciso estar atento para duas coisas: a continuidade e a diversidade. Há um tempo de priorizar isso ou aquilo. Por exemplo, crianças que trabalharam com um professor especialmente atento à literatura no ano anterior, adquirindo experiência nesse campo, possivelmente não tenham tido tempo para outra experiência, igualmente ampla, com as artes visuais. Então, no ano seguinte, é preciso diversificar, investir em outros conteúdos. Por outro lado, é preciso avaliar as condições de cada grupo de crianças. Já tivemos, por exemplo, um grupo decrianças bastante heterogêneo, vindas de experiências muito diferentes. Nesse caso, o professor se preocupou mais com a formação do grupo, com a dinâmica de trabalho e a organização das crianças, propostas de jogos, brincadeiras, histórias que poderiam encantar o grupo, para criar possibilidades de outros trabalhos. Pode acontecer de uma sala não dominar os mesmos conteúdos já dominados por outras classes da mesma idade. Isso também deve ser considerado na hora da escolha, de forma a não colocar um grupo em prejuízo em relação a outros. O professor, então, precisa avaliar o grupo que tem, para pensar situações que deve criar, para alcançar suas metas.

Em que momento planejar? Existe um período especial para esse trabalho?

Sueli: Planeja-se e replaneja-se o ano todo. No final do ano, no nosso encontro de estudos, dia em que a creche fecha, reservamos uma tarde para que as professoras façam a passagem de sua turma para o ano seguinte, contando o que realizou naquele ano. Participam todas as educadoras e a coordenadora pedagógica. Também há um momento de troca de experiências entre profissionais de outras creches da Obra do Berço. Dividimos o grupo de acordo com os módulos (por faixa etária) com que cada educadora trabalha. Essa troca ajuda a repensar o planejamento para sua sala, a aproveitar idéias, sugestões etc.
Mas só isso não basta. É preciso acompanhar as professoras durante o ano todo. Eu programo reuniões semanais de planejamento com elas. A cada semana eu me reúno com uma professora, a responsável pelo planejamento daqueles dias; temos sempre uma responsável enquanto a outra professora assessora. Na semana seguinte, se revezam. Em alguns casos eu atendo à dupla, quando vejo que uma educadora, por estar na sala há mais tempo, pode ajudar a outra que está chegando àquele módulo. Levo minhas observações, as professoras trazem suas ideias e dúvidas e nós as compartilhamos, avaliando o que deu e o que não deu certo e o que precisa ser ajustado.
Fico muito mal quando não consigo, por algum motivo, me reunir com a educadora. Quando isso ocorre, na primeira hora do dia seguinte faço a reunião. Priorizo o planejamento porque é nele que construímos nosso trabalho, nele que acontecem os ajustes. É o tempo de refletir.
Não deixamos o professor sozinho, porque o planejamento depende da discussão, é um processo, um vaivém baseado em registro e observação. Tudo aquilo o que lemos sobre os instrumentos metodológicos como o registro, a observação, aquelas orientações, só fazem sentido quando os colocamos em prática. Não se muda nada antes de observar e diagnosticar.

Virgínia Gastaldi

“O planejamento feito no início do ano é nosso conhecimento prévio,
o que nos sustenta, produto da nossa história”
(Virgínia Gastaldi)

Virgínia: A melhor época para planejar é sempre. A gente trabalha numa perspectiva que não é rígida, por isso não podemos ignorar o andamento da turma. Mas há grandes marcos no planejamento: final de ano e começo de ano. Na Logos, o início do ano é um marco daquilo que será a espinha dorsal do trabalho naquele ano. Toda a equipe participa. O planejamento de 2000 começou no final de 99, quando todos os professores já fizeram avaliações do trabalho realizado em anos anteriores, em cada classe.
Tudo é documentado e passado aos professores que assumirão as turmas do ano 2000: são cartas contando o que as crianças aprenderam e o que foi objeto de interesse e motivação na aprendizagem das crianças no ano de 99, ou seja, a trajetória daquela classe. Cabe ao professor do ano 2000 discutir e trocar impressões com toda a equipe, a fim de escolher os conteúdos interessantes, seja para a continuidade, seja para a diversidade, que são duas preocupações importantes. Esse produto é o nosso conhecimento prévio, o que nos sustenta, produto da nossa história, um nível de planejamento que só se realiza durante o ano. Cada professor, de acordo com suas possibilidades, escreve seus planejamentos. Como estamos em formação permanente, consideramos os planejamentos como provisórios. Eles são reformulados à medida que o professor desenvolve ações com as crianças, reflete sobre elas e consegue observar outros aspectos do trabalho. Ao entrarem em cena novos elementos da teoria e novas ações, o professor ganha a condição de fazer uma segunda, terceira versão de planejamento. Às vezes, a versão que o satisfaz é a que fica pronta quando ele está finalizando o trabalho. Do ponto de vista da formação, é uma das coisas mais importantes, pois dá ao professor a oportunidade de refletir, reformular e formalizar suas ações.

Como alimentar o planejamento durante o ano e dar continuidade ao trabalho?

Sueli: Nas creches da Obra do Berço, todas as educadoras têm direito a uma hora de leitura semanal, para aprimorar seus projetos. Além disso, nós também temos, uma vez por mês, uma reunião que antes era chamada de reciclagem. Um dia, os pais perguntaram: “O que vocês reciclam quando fecham a creche? Garrafa, jornal, o quê?” Só então nos demos conta de como usamos termos inadequados! Agora nós chamamos essa reunião de “encontro de estudos”. Nesse dia a creche fecha. Reservamos o período da manhã para o projeto de formação dos professores1 e de toda a equipe da Obra do Berço. À tarde o grupo planeja suas atividades, tendo como subsídio a discussão feita pela manhã.

Virgínia: Costumamos escolher, no início de cada ano, as áreas que serão objeto de discussão mais apurada e mais aprofundada por parte dos professores. No ano passado, por exemplo, nós discutimos seqüências de ciências, porque avaliamos a trajetória de crianças, a nossa trajetória como professores, e da própria educação infantil: tínhamos consciência de que, no ano passado, havíamos buscado muitos caminhos, aberto possibilidades. Mas precisávamos de planejamentos que atendessem a objetivos e conteúdos mais específicos, que assegurassem a aprendizagem de procedimentos, como, por exemplo, a observação direta ou indireta, o manuseio de instrumentos, a condição de lidar e tratar as informações de fontes diversas, como vídeos etc., e a condição de sistematizar essas informações. Então demos enfoque maior aos conteúdos procedimentais.

Usamos grande parte das reuniões de formação2 do ano passado para planejar, discutir as ações realizadas com as crianças, o alcance delas, avaliar e reformular planejamentos. Ganhamos no ano passado, como equipe, a condição de fazer planejamentos mais específicos de ciências biológicas, particularmente, porque optamos por trabalhar seqüências mais modestas, mas que tivessem um compromisso maior com a
qualidade do que era ensinado às crianças. Temos feito o mesmo, sucessivamente, com outros conteúdos.

1 No último ano os educadores estudaram com maior profundidade os processos de aprendizagem da linguagem escrita, em especial a leitura.
2 Na Escola Logos os professores têm assegurada uma reunião de equipe de 2 horas por semana, além de 1 hora semanal, com a coordenação pedagógica, para planejamento.

Para que planejar

    • Organizar nossas hipóteses, tornar consciente a intencionalidade que está por trás das intervenções que se pensam necessárias.
    • Tornar realidade os sonhos, as idéias, as finalidades e as intenções educativas.
    • Esclarecer, orientar e dar idéias de atividades e outras propostas que queremos realizar para ensinar algo.
    • Permitir tomadas de decisão melhores, mais refletidas e justificadas de acordo com as intenções, ou seja, o que se quer ensinar.
    • Ajudar a pensar formas de acolher e integrar as diferenças entre as crianças levando em conta seus conhecimentos prévios e suas capacidades, potencializando os saberes do grupo.
    • Prever as possíveis dificuldades de cada criança e orientá-la com a ajuda necessária.
    • Dar suporte para que se possa preparar e prever recursos necessários.
    • Dar parâmetros e critérios para organização do tempo e do espaço.
    • Tornar observável o que se deve avaliar e ajudar a prever os momentos de fazê-lo, durante o percurso do trabalho desenvolvido com as crianças.
    • Diante da avaliação e das intenções previamente pensadas, o planejamento garante a possibilidade de regular o processo de ensino ao de aprendizagem, garantindo realmente a aprendizagem das crianças.

(Do livro Aprendizagem da Língua Escrita, Délia Lerner)

Necessidades que um bom planejamento deve contemplar

    • Dar uma orientação diferente a certas atividades.
    • Conceber o plano de trabalho como um instrumento flexível, capaz de acomodar-se a inquietações, contribuições, hipóteses e estratégias das crianças.
    • Levar em consideração os interesses do grupo em diferentes momentos de desenvolvimento da proposta.
    • Aproveitar materiais interessantes e acontecimentos imprevistos.
    • Buscar pontos em comum entre as diferentes áreas.
    • Tomar como ponto de partida problemas detectados nas produções escritas das crianças ou surgidos durante as discussões.
    • Vincular o conteúdo escolar com o contexto pré-escolar.
    • Não se pode contar com uma seqüência fixa de conteúdos a serem transmitidos dia-a-dia.
    • Prever atividades coletivas e grupais.

(Do livro Aprendizagem da Língua Escrita, Délia Lerner)

Para saber mais

  • Como trabalhar com conteúdos procedimentais em sala de aula. Antoni Zabala. Ed.Artmed, Tel.: (0XX11) 883-6160
  • O Currículo – uma reflexão sobre a prática. J.G. Sacristán. Ed.Artmed.
  • Os conteúdos na reforma. Coll, Pozo, Sarabia & Valls. Ed.Artmed.
  • Aprendizagem da Língua Escrita. Délia Lerner. Ed.Artmed.
  • Aprender e ensinar na educação infantil. Bassedas, Huguet & Solé. Ed.Artmed.
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