Prazeres e saberes de leitores não convencionais

Muitos educadores não vêem com bons olhos a relação de crianças muito pequenas com a escrita. Neste artigo, Pedro (3 anos), Duda (4 anos), Diogo (5 anos) e Ana (5 anos) desafiam essa postura. Veja com que alegria e competência eles se revelam participantes da cultura escrita

“Ensinar a ler e escrever continua sendo uma das tarefas mais especificamente escolares. Um número muito significativo (demasiadamente significativo) de crianças fracassa já nos primeiros passos da alfabetização. O objetivo deste livro é mostrar que existe uma nova maneira de considerar esse problema. Pretendemos demonstrar que a aprendizagem da leitura, entendida como o questionamento a respeito da natureza, função e valor desse objeto cultural que é a escrita, inicia-se muito antes do que a escola o imagina, transcorrendo por insuspeitos caminhos.” (Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, psicogênese da língua escrita, nota preliminar)

Ilustração de aluno representando os ciclopes, personagens presentes nos mitos gregos (VIrginia Gastaldi)

Ilustração de aluno representando os ciclopes, personagens presentes nos mitos gregos (VIrginia Gastaldi)

O texto acima foi escrito há mais de duas décadas, mas a polêmica sobre alfabetizar ou não crianças na pré-escola ainda é grande. Há uma tendência à concordância na rejeição das práticas de exercício motor, repetição e cópia. O que a elas se opõe, porém, deve ser objeto de discussão, visto que, muitas vezes, essa oposição acaba por desconsiderar o que nelas há de melhor, ou seja, a responsabilidade da Educação Infantil com a alfabetização. Cabem, então, esclarecimentos sobre o que se entende por alfabetização, uma vez que é isso que está em jogo quando a discussão emerge, mas nem sempre a isso se faz referência. Enquanto as discussões se arrastam, grande parte das pré-escolas (e escolas) – públicas e particulares – está longe de serem ambientes em que circulam práticas de leitura e escrita em suas variadas formas, ou seja, ambientes alfabetizadores, e assim deixam de criar para as crianças a oportunidade de participar dessas práticas e com elas aprender. Um ambiente alfabetizador na Educação Infantil em nada se assemelha a práticas tediosas ou precoces.

Partindo da minha experiência como coordenadora de Educação Infantil durante oito anos1, descreverei como vejo a imersão das crianças na cultura escrita, usando alguns exemplos de atividades, para que tenhamos uma referência do que estamos entendendo por um trabalho em contexto letrado2. Esclarecerei como alguns dos conceitos que trataremos aqui podem se traduzir em boas situações didáticas. Os exemplos são reais. Neles estão conservados os nomes das crianças, como forma de reconhecer o quanto sabem, e os nomes dos professores, como forma de reconhecer o quanto ensinam.

O reconto de Pedro
Imagine a cena: Pedro tem 3 anos, não lê convencionalmente ainda, obviamente, mas adora livros. Conhece muitos, especialmente o O caso do bolinho, de Tatiana Belinky. Tem tanto prazer em ouvir essa história que já a sabe de cor. Ele está sentado junto a alguns de seus amigos de sala, ocupando o lugar do contador de histórias. Abre o livro e começa a leitura. Ele diz o título, o nome do autor e lê o livro inteiro, com um impressionante ajuste do que fala com o que está escrito, virando as páginas precisamente ao término do texto. Imita sua professora ao ler um livro, utilizando-se para isso de uma fala distante da estrutura do oral, com expressões muito próximas às dos livros:

– E lá se foi o bolinho, rolando pela estrada, até que encontrou uma lebre… Rola que rola, até que encontrou um lobo… Não me pape não, seu Lobo, deixe eu cantar uma canção pra você. Ele pára durante a leitura para ouvir comentários de seus amigos, conta coisas e prossegue do ponto onde parou, sempre com modulações na voz, dando ênfase a passagens que lhe parecem mais interessantes. Seus ouvintes, também de 3 anos, estão atentos e escutam interessados toda a história.

Fazem interrupções, comentam passagens, lembranças, riem e voltam à história. Pedro retoma a narrativa, e seus ouvintes continuam atentos. Ao final, riem, apontam imagens, repetem partes do texto e conversam agrupados em torno do livro. Revelando detalhes da cena Vamos pensar um pouco sobre a cena. O que vemos em Pedro e seus amigos é um impressionante domínio oral de linguagem escrita e um comportamento leitor que não encontramos tão freqüentemente mesmo entre adultos. Como isso se tornou possível? Na escola de Pedro, que ele freqüenta desde os 2 anos, a leitura de histórias é uma atividade realizada pela professora diariamente. É sempre a última atividade coletiva do dia. Por isso essa criança possui um grande repertório e já tem preferências estabelecidas. Há, na sua sala, uma estante com livros variados que ele e seus amigos podem folhear em vários momentos do dia.

Pedro conhece bem não somente O caso do bolinho, mas outros tantos contos: O grande rabanete, também de Tatiana Belinky, A casa sonolenta, O rei bigodeira, adora as histórias do Como contar crocodilos e, como não poderia deixar de ser, os contos de fadas. Ele aprendeu a cuidar dos livros e sabe o que há dentro deles. Sabe que são escritos, como se apresentam essas narrativas e que há muitas delas, de diferentes tipos; que algumas dão medo, outras vontade de rir, outras, uma forte emoção… Sabe ouvir sem interromper, fazer comentários, explicitar suas preferências, e a isso chamamos comportamento leitor. Sabe também que o modo como as coisas estão escritas nos livros é diferente daquele que usamos em grande parte do nosso cotidiano verbal; que são escritas na língua com que se escreve e não na língua com que se fala, e a esse saber denominamos conhecimento de linguagem escrita.

Por todos esses motivos, podemos dizer que Pedro já é usuário da cultura escrita. Ele e seus amigos sabem ouvir e recontar histórias, acompanham o seu desenvolvimento, fazem comentários, e as interrupções não os fazem perder o interesse e nem ele perde o fio da narrativa. Conhece as narrativas dos personagens e o momento certo de repetir suas falas. Pode-se dizer que esse é um tipo de aprendizado em que não temos verificado fracasso. Não me lembro de ter encontrado criança que tivesse as mesmas oportunidades e condições criadas pela escola e pelos professores que não tenha desenvolvido isso que chamamos comportamento leitor.

O sarau de poesias
Novo episódio. As crianças da classe de Duda têm por volta de 4 anos e prepararam um sarau com a seleção de seus poemas prediletos como presente para a comemoração do Dia das Mães. Essa foi a finalização de um projeto didático que a professora Lucila Silva Almeida realizou com sua classe. Inicialmente, discutiu com o grupo sua proposta de sarau para as mães, e as crianças foram, ao longo das atividades que se seguiram, definindo, juntas, como fazê-lo. Elas conheceram muitos poemas, relembraram outros e, em várias sessões de conversa, foram discutindo e falando sobre os que mais gostavam, para assim eleger quais fariam parte do roteiro para o sarau. Memorizaram alguns e ensaiaram a apresentação, sempre com uma pasta em que todos os poemas estavam escritos em letra de imprensa maiúscula e com ilustrações que elas mesmas fizeram. A professora discutiu com as crianças o que precisariam fazer em uma situação como a de ler em voz alta para que outros pudessem ouvir e apreciar.

Mas na hora da apresentação Duda não pôde começar, porque não estava com sua pasta e protestou que assim não poderia ler. De nosso ponto de vista, isso não teria problema, mas, para ela, como poderia “ler” se não tinha a pasta? Tão logo foi encontrada, Duda pôs-se a procurar as poesias. A cada novo poema ela e seus amigos viravam a página e recomeçavam a “leitura”. Ao final a platéia pediu bis, então a turma localizou o poema solicitado e o leu novamente.

Os saberes de Duda
Duda, assim como Pedro, tem conhecimento e gosto pelas histórias. Mas, além das histórias, também conhece e gosta de poemas. Aprendeu ouvindo regularmente poemas selecionados por seus professores especialmente para promover uma aproximação prazerosa entre as crianças e esse tipo de texto. Ela adora “A casa e a foca”, de Vinícius de Moraes e “Tanta tinta” e “A língua do nhem”, de Cecília Meireles. Já tem suas preferências e pode escolher porque teve a oportunidade de pensar sobre elas no projeto de sarau literário. Mais uma vez é preciso perguntar: como Duda aprendeu tudo isso?
Freqüentando uma instituição em que a leitura esteve presente em seu cotidiano, tanto quanto as brincadeiras e outras atividades próprias da Educação Infantil. Sua professora lia histórias todos os dias, e também notícias de jornal, receitas culinárias, bilhetes que os pais mandavam, comunicados da secretaria, letras de canções e muitos outros textos. Além de todos esses textos apresentados em situações bastante significativas, Duda também lia poemas regularmente. Muitas vezes sua professora lia vários poemas seguidos e as crianças ouviam. Outras vezes, a professora selecionava um poema de que as crianças gostavam e que, de tanto repetir, haviam memorizado, e então propunha que acompanhassem a leitura no texto escrito que tinham em mãos.

Por isso ela sabia em que folhas estavam escritos seus poemas, que escrita e ilustração são coisas diferentes e que o escrito serve para ser lido. Isso possibilitou que ela tivesse, no momento da apresentação, a forte convicção de que não podia se apresentar sem sua pasta. Duda tem a aparentemente engraçada certeza de que lê, e isso, embora soe apenas gracioso para muitos de nós, é um dos conhecimentos mais importantes que uma criança precisa ter para se aventurar com a leitura e a escrita: saber que pode ler. E essa certeza tão simples, essa confiança em sua condição não é, sabemos, experimentada por grande parte das crianças, que não são convidadas a ler e nem vivem em um ambiente letrado. E mais, essa condição que Duda conquistou é importantíssima para que sua professora possa planejar, a partir de agora, situações em que, além de acompanhar o texto memorizado, ela leia por si mesma, pondo em jogo as idéias que tem sobre a leitura.

O interesse e a curiosidade infantil pela cultura escrita não têm limites (foto:  VIrginia Gastaldi - Escola Logos)

O interesse e a curiosidade infantil pela cultura escrita não têm limites (foto: VIrginia Gastaldi – Escola Logos)

O conto de fadas da classe de Diogo
Os próximos exemplos são de situações nas quais as crianças estão escrevendo e produzindo textos. Quero ilustrar não somente as situações em que elas lêem “com os olhos do professor” – uma vez que não são leitoras convencionais –, mas aquelas em que escrevem “pelas mãos do professor”. Diogo tem 5 anos e sua classe produz um texto coletivo para fechar um ciclo de conhecimento textual. Eles escolheram fazer um conto de fadas. Partindo de uma idéia inicial, resumida num primeiro texto que mais parecia um roteiro, as crianças construíram uma história instigante, bem estruturada e esteticamente interessante, tal como vemos nos livros de contos de fadas de verdade.

Durante a seqüência de atividades para a escrita, em que as crianças ditavam e a professora era a escriba, elas escreviam e revisavam, sempre voltando ao que estava escrito. Colocando-se como leitores do próprio texto, faziam ajustes e melhoravam-no. Diogo queria mexer numa frase, no meio do parágrafo, que caracterizava a bruxa em que a Chapeuzinho havia se transformado. A frase era a seguinte: “Os olhos esbugalhados, a testa suja de lentilhas. A boca ficou torta, com um só dente quebrado”.

– Olha Sil, não pode ser assim, porque, olha, não pode ter um dente quebrado, disse Diogo.
– Pode, sim – disse Pedro, que havia sugerido esse detalhe –, bruxa tem dente quebrado, não bom!
– É, mas não pode ser porque senão fica bom e não pode ficar bom, tem que ficar horrorosa
– insistiu Diogo.
– É, tem que ficar horrorosa, mas não estou entendendo que mudança você quer fazer, você não quer deixar o dente quebrado, quer por outra coisa no lugar?, perguntou a professora.
– É, ela tem um dente quebrado, um é muito pouco, porque se for só um, então, é bom e ela tem que ficar horrorosa e assustadora!

Depois de muito discutir, chegaram a um consenso sobre o sentido da frase e como ele imaginava essa bruxa. A frase teve que mudar para: “A boca ficou torta, só tinha um dente e estava quebrado”, demonstrando um conhecimento sofisticado para uma criança de 5 anos. E de Diogo, o que podemos dizer que sabe? O que sua participação na escrita do conto de fadas mostrou que aprendeu? Ele conhece tão bem alguns textos, tais como os contos de fadas, que pode escrevê-los, tendo como escriba o professor. Teve oportunidade, entre outras coisas, de mostrar seus conhecimentos sobre contos de fadas e construir outros, porque sua professora entende que a escrita não é uma ação motora e que as crianças que ainda não escrevem por si mesmas podem ser autoras de textos na situação de ditantes.

Assim, Diogo já escreveu (ditando para seus professores) muitos bilhetes, cartas, pedidos, reclamações, instruções etc., sempre com um propósito comunicativo real e claramente colocado para ele. A essas situações de escrita chamamos produção de texto oral com destino escrito. No caso específico da escrita do conto, a professora planejou e realizou um projeto de escrita de uma história. Primeiro as crianças ouviram contos que já conheciam e conheceram outros. À medida que as rodadas de leitura foram se realizando, as crianças foram listando, com a ajuda da professora, quais eram os elementos que se repetiam em todos os textos, ou seja, foram levantando as principais características dos contos de fadas. Depois fizeram, como a professora conta, um esboço da história que produziriam, com os principais acontecimentos e os elementos textuais que teria.

Escreviam um pouco por dia, revisavam, voltavam ao roteiro, liam, pediam a outros leitores que fizessem uma apreciação crítica e dessem sugestões e, assim, trabalharam, entre outras coisas, o importante conhecimento de que a escrita de texto é um processo, produto de muito trabalho e de conhecimentos sobre o texto, e não somente de inspiração. Ou seja, aprenderam que podem escrever e, melhor ainda, que podem escrever bem.

Ana e os gregos
Ana também viveu uma experiência interessante em um projeto de estudo de versões dos mitos clássicos gregos. Ela e seu grupo se dedicaram à produção de texto em pequenos grupos, em que as crianças se revezaram, orientadas pela professora, nas tarefas de ditar e escrever sobre os mitos gregos que conheciam e que foram objetos de uma seqüência didática de leitura. Ana tem 5 anos e já sabe escrever, por isso foi a escriba eleita pela turma. Sua professora planejou a distribuição das crianças em pequenos grupos, de modo que todos pudessem ter uma tarefa diferenciada e compatível com o conhecimento que possuíam. Assim, para a mesma situação de trabalho, tiveram tarefas diferentes: os que não escreviam convencionalmente ditavam, e os que já escreviam, como Ana, escreviam.

Mas Ana, como os poucos que ali escrevem por si, tem muito que aprender sobre a escrita de textos e, por isso, no trabalho de revisão, ela está na mesma condição que os demais, revendo “o que” foi escrito e não “como” foi escrito. Ou seja, revendo os aspectos discursivos, e não as questões referentes ao sistema notacional. Então, Luciana, a professora, leu para as crianças e propôs voltar ao texto, dizendo:

– Eu vou ler e a gente vai ver o que dá para melhorar: “O ciclope só tem um olho só. Ele come gente. Ele é filho de Posêidon. Ele é gigante”. – E perguntou: O que dá pra melhorar?
– Precisa falar mais coisa dele – disse Sofhia.
– Não, está bom. Eu quero saber se tem alguma palavra que repete muito – retomou.
– Sim! Tem ele, ele, ele.
– E precisa ter tanto ele?
– Diante da dúvida do grupo, a professora retomou – Vamos ler: “O ciclope só tem um olho só. Ele come gente. Ele é filho de Posêidon. Ele é gigante”.– Dá pra tirar.
– Qual? – perguntou a professora.
– Todos, disse Ana.
– Não, não dá, não, todos não – insistiu Fernanda.
– Por quê? – perguntou a professora.
– Porque vai ficar: ele tem um olho só, come gente. – disse Fernanda.
– Então qual dá pra tirar?
– Os outros – respondeu Fernanda.
– Vamos ver como fica: “O ciclope tem um olho só. Ele come gente, é filho de Posêidon e é gigante”. Nessa situação, as crianças puderam aprender a tirar do texto, tanto quanto possível, as marcas do oral, assim como as repetições de palavras, e dessa forma escrever de um modo próximo ao que chamamos a linguagem com que se escreve.

Quem são essas crianças?
Quem são Pedro, Duda, Diogo e Ana? Alunos da mesma escola, exemplos de trajetórias de aprendizagem da cultura escrita. São crianças letradas, que têm experiência com diferentes textos e de diferentes gêneros, participaram e participam de situações sociais mediadas pela escrita. Sabem o que sabem e conseguiram fazer todas essas coisas porque estão inseridas num ambiente letrado, no mesmo sentido que os adultos usam para falar sobre os intelectuais que são versados em letras. Elas conhecem tanto sobre os tipos de texto, gêneros, usos e funções que são capazes de retomar sua própria produção e reescrever segundo as exigências do portador do texto, como no caso do conto de fadas.

Podem fazer isso porque tiveram e têm a oportunidade, dada pela escola, de pensar sobre a escrita e a leitura, sobre seus usos e funções. E a oportunidade, nesse caso, é a presença da leitura e da escrita de modo significativo e prazeroso no cotidiano escolar. Todos já ouvimos a célebre frase de Emilia Ferreiro2 que diz que não se pode pensar sobre o que está ausente. Pedro, Duda e as demais crianças participam, desde cedo, de práticas diárias de leitura pelo professor, situação didática imprescindível na Educação Infantil.

O que cabe pensar e refletir é sobre a qualidade da presença da leitura na escola: como ela chega, o que chega e com que propósito. Esse entendimento tem implicações pedagógicas: quando falamos aqui em escrita e leitura, estamos nos referindo à presença de práticas de leitura e de escrita mediadas pelo professor. Na Educação Infantil, essas discussões fazem toda a diferença. Ao mesmo tempo em que redefinem as práticas do professor, abrem-lhe a perspectiva de ver sentido ou de ressignificar as práticas com textos, às vezes banalizadas, ou subaproveitadas.

Ainda que não sejam leitores convencionais, as crianças desenvolvem estratégias para ler a  partir do que já sabem sobre os livros (arquivo Escola Logos)

Ainda que não sejam leitores convencionais, as crianças desenvolvem estratégias para ler a partir do que já sabem sobre os livros (arquivo Escola Logos)

A família e a escola
Como multiplicar histórias como a de Duda, Pedro, Diogo e Ana? Como conseguir aprendizagens tão significativas quanto as que vimos? Essa é a grande pergunta. A creche ou a escola não inauguram a relação das crianças com a leitura e a escrita; por outro lado, o fato de as crianças estarem simplesmente imersas no universo oral e letrado não se traduz diretamente em apropriação da escrita como sistema. Esse é um processo que não acontece, de forma generalizada, sem ajuda. Não se aprende a ler e escrever espontaneamente, daí a importância e a responsabilidade da escola.

Além da presença dos textos, do professor-leitor e da escola como ambiente letrado, é preciso investir em uma verdadeira comunidade de leitores e escritores. Como isso pode ser feito? Por onde começar? Pelas bibliotecas bem organizadas e em funcionamento para as crianças e suas famílias, com o envolvimento da comunidade escolar em situações de leitura, no cuidado com os livros, no estímulo, na criação e construção de lugar e sentido para a leitura e a escrita a partir dos contextos e culturas próprios das várias comunidades. Por uma escola em que circulem também as histórias típicas da comunidade local ou de seus lugares de origem, seus saberes, seus estilos próprios. Daí a importância de os dirigentes, técnicos, supervisores, diretores e coordenadores realizarem ou dinamizarem projetos institucionais incluindo as famílias, seus saberes, suas idéias e seus desejos e comprometendo-as, também, com a necessidade e a importância de possibilitar às crianças a participação em um mundo letrado. Nesse cenário, o papel da Educação Infantil é assegurar que todas as crianças tenham essa competência, usando os recursos intelectuais de que dispõem, porque é muito importante que elas sejam letradas4 antes mesmo de grafarem um texto convencionalmente.

Leitura, escrita e inclusão social
A maioria das crianças de baixa renda tem pouca oportunidade de leitura e escrita em casa, seja pela dificuldade com a compra de livros e material impresso, seja pela própria condição da família de não usuária da escrita e da leitura, o que, em muitos casos, é erroneamente entendido pela instituição educativa como falta de interesse das famílias ou, em casos mais graves, como famílias com déficit cognitivo. Sabendo que este é um elemento muito relevante e altamente relacionado com a aprendizagem das crianças, recomenda-se o uso sistemático da linguagem escrita na escola, em todas as oportunidades significativas, como instrumento de aprendizagem, veículo de informação, fonte de prazer etc., evitando associar a linguagem escrita à atividade escolar sem significado social, repetitiva, sem justificação ou alheia às suas necessidades (como cópias de letras, sílabas e frases desconexas).

Montar uma pequena biblioteca com bons títulos, com livros apropriados para diferentes faixas etárias, instituir o empréstimo de livros, organizar modos de fazer os textos circularem de casa para a escola e vice-versa são ações de grande importância para a construção de um ambiente alfabetizador. Quando lhes é dada a oportunidade do exercício pleno e legítimo da língua, as crianças se esforçam, aprendem e conseguem produzir textos reais, apropriados e eficazes para as necessidades que têm.

Em um país como o Brasil, onde a dívida social para com as crianças é tão grande, essa não é uma questão de decisão local ou de cada professor, mas direito das crianças. O acesso ao mundo letrado é direito delas, como também é direito legítimo de todas as famílias que confiam seus filhos a uma instituição educativa. É papel da Educação Infantil aproximar as crianças das práticas sociais convencionais de sua cultura – e a escrita se inclui aqui –, ouvir e valorizar suas idéias sobre o que as cerca e apoiar e incentivar suas investigações e descobertas. O ideal é que, com a continuidade do trabalho nessa perspectiva, em outros ciclos da escolaridade as crianças sejam plenamente integradas à comunidade de leitores e escritores, possam participar e se integrar a outros círculos,ocupando lugares distintos fora da instituição, na própria vida, como cidadão.

Desejamos o fim das instituições educativas ágrafas (sem escrita), de comunidades escolares onde não circulem práticas de leitura e escrita. Desejamos a efetiva e tão sonhada democratização da leitura e da escrita, que todas as crianças sejam letradas. E isso não exclui brincar, desenhar, pintar, modelar, fazer jogos corporais, estudar ciências naturais, jogar, aprender sobre o sistema numérico e, evidentemente, divertir-se muito, fazer amigos, aprender a conviver, a respeitar regras.

Condenáveis são a mesmice e a falta de sentido das práticas de repetição e cópia. Condenável é a falta de entusiasmo que essas práticas deixam na criança em relação à escola como resultado final. Questionáveis são a ausência de ludicidade, de interesse, de significado. Tudo o mais é prazer em aprender.

(Maria Virgínia Gastaldi, formadora do Instituto Avisa Lá – este texto foi escrito para uma palestra para professores da rede municipal de Educação Infantil da cidade de São Paulo)

1Coordenadora de 1995 a 2002 da então Escola Logos. As fotos e o desenho que ilustram a matéria foram feitos na escola durante esse período.
2Contexto letrado: um conjunto de eventos onde ler e escrever têm sentido.
3Emilia Ferreiro: psicológa e pesquisadora argentina radicada no México.
4Letradas: reais usuárias da leitura e da escrita.

A professora Renata lê para crianças de 2 a  3 anos e reconhece o prazer que elas têm nesses momentos

A professora Renata lê para crianças de 2 a 3 anos e reconhece o prazer que elas têm nesses momentos (foto: VIrginia Gastaldi – Escola Logos)

Ficha técnica

Equipe: Maria Virgínia Gastaldi. E-mail: mariavir@uol.com.br
Lucila Silva Almeida. E-mail: lucilasilva@yahoo.com.br
Silvana Augusto. E-mail: silvana_augusto@uol.com.br
Luciana Camargo. E-mail: pereiralu@yahoo.com

Para saber mais

  • O caso do bolinho. Tatiana Belink. Editora Moderna. Tel.: 0800 17 2002.
  • Um conto tradicional reescrito com a experiência de quem entende de criança. Baseando-se na repetição das ações, o enredo tem um humor natural, perfeitamente adequado às crianças pequenas.
  • Ou isto ou aquilo. Cecília Meireles. Editora Nova fronteira. Tel.: (21) 2131-1111. Livro de poemas de Cecília Meireles que brinca com as palavras e encanta as crianças com sua sensibilidade, impressões e cores. É considerado um dos mais belos e importantes livros de poemas para crianças.
  • Arca de Noé. Vinícius de Moraes. Editora Cia. Das Letras. Tel.: (11) 3707-3500. Arca de Noé é também o título do primeiro poema deste livro. O conjunto é formado por 32 poemas, a maioria sobre bichos, e inclui os que constam dos discos Arca de Noé 1 e 2. Alguns foram musicados pelo próprio Vinícius de Moraes. Destaque para o poema A Foca.
  • Divinas aventuras – História da mitologia grega. Heloisa Prieto. Editora Companhia das Letrinhas. Tel. (11) 3707-3500. Mostrando a atualidade da mitologia grega e sua presença camuflada no universo dos quadrinhos, desenhos animados e filmes de ação, a autora convida seus leitores para um encontro surpreendente com Apolo, Atena, Hermes, Posêidon, Zeus e outros deuses.
  • A casa sonolenta. Audrey Wood. Editora Ática. Tel.: (11) 3346-3001. Era uma casa sonolenta, onde todos viviam dormindo. Quem diria que uma simples pulguinha saltitante pudesse acabar com tudo aquilo num só instante?
  • O rei Bigodeira e sua banheira. Audrey Wood. Editora Ática. Tel.: (11) 3346-3001. O fanfarrão Rei Bigodeira não quer mais sair de sua banheira. Só uma criança poderia descobrir como acabar com essa brincadeira.Tradução de Gisela Maria Padovan, Prêmio Monteiro Lobato de melhor livro traduzido para criança.
  • O grande rabanete. Tatiana Belink. Editora Moderna. Tel.: 0800 17 2002. A história, de enredo simples, tem como atrativo principal a forma: é narrada como um conto cumulativo, recurso que encanta e diverte a garotada. Além do aspecto lingüístico, é possível explorar, por meio da narrativa, o lado humano: a questão da solidariedade, da cooperação, da divisão de bens e até da auto-estima exacerbada, aspecto representado pelo ratinho, no bem-humorado e imprevisto final.
  • O Livro ilustrado da mitologia. Philip Wilkinson. Editora Publifolha. Tel.: (11) 3649-4747. Um guia de introdução às mais importantes mitologias do mundo, com mais de 500 personagens e totalmente ilustrado. Fotos de esculturas, ilustrações e reproduções de pinturas propiciam um panorama visual abrangente das lendas e mitos.
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