As esculturas e as crianças

A escolha das esculturas para o trabalho de artes com crianças de 3 anos foi uma decisão acertada pois é uma excelente porta de entrada para a experiência estética

A proposta de nutrição estética “Para comer com os olhos”, desenvolvida pela Eduque, envolve leitura visual, fruição de arte, reflexão, registro e construção de conhecimentos específicos da área. Incentiva-se a aproximação ao patrimônio estético cultural da cidade a partir de contatos acumulativos mediados dos alunos com museus de arte da cidade de São Paulo. Vimos, na edição 51 dessa revista, quais os propósitos deste projeto e o relato do trabalho realizado com os alunos do segundo ano do Ensino Fundamental.

Desenho de Enzo

Desenho de Enzo

Apresentaremos aqui as mesmas etapas realizadas com o Maternal, uma vez que o projeto pensa a alfabetização do olhar e dos sentidos das crianças desde a Educação Infantil até a conclusão da primeira etapa do Ensino Fundamental. A autora Lucia Santaella afirma que: “O ideal estético é nutrido pelo cultivo de hábitos de sentimento. Sendo as obras de arte aquelas coisas que encarnam qualidades de sentimentos, os hábitos de sentimentos só podem ser cultivados através da exposição de nossas sensibilidades às obras de arte. Em vista disso, (…) eles (os museus) cumprem essa imprescindível tarefa de nos colocar na presença das obras de arte que fisgam nossa sensibilidade com vistas à mudança de hábitos estereotipados e deteriorados do sentir”.1

Com base nessa afirmação é que envolvemos as crianças, desde o Maternal, nessa proposta de alfabetizarmos o seu olhar e a sua sensibilidade. Desse modo, os alunos do Maternal visitaram o Jardim das Esculturas no Museu de Arte Moderna (MAM), localizado no Parque do Ibirapuera, em São Paulo-SP.

O projeto em ação

Etapas de desenvolvimento do projeto com o Maternal:

1ª etapa – Avaliação iniciante: O que é um museu?
Com o propósito de fazer uma sondagem para o levantamento de repertório, numa atitude investigativa diante dos saberes dos educandos (aquilo que eles sabem e o modo como sabem), iniciamos o trabalho em uma roda de conversa com a pergunta “O que é um museu?”. As crianças responderam do ponto de vista delas, sem nenhuma interferência por parte do professor. A ideia era que verbalizassem o que pensavam sobre o assunto, e cada uma tinha sua explicação:

Que tem chafariz. (João Pedro Canone Correia)

É um túnel. (Catherine Salgado Lavos)

É maravilhoso perceber o pensamento sincrético dos pequenos. Ao tentarem explicar as coisas, misturam, interligam, relacionam realidade com fantasia e a pergunta com a própria vivência. Essa forma de pensar, que parece ser distante da lógica formal, é natural da infância.

Henri Wallon (médico, psicólogo e filósofo) explica que o pensamento infantil tem características particulares, diferentes das do adulto. A principal delas é o pensamento por meio de pares complementares. A criança explica um objeto relacionando-o a outro, combinando diferentes referências e apresenta uma resposta. Nesse reagrupar, constrói um novo e inusitado sentido. Gera uma dinâmica que se aproxima da Poesia. São associações por sonoridade, por similaridade de ideias, por relação entre os objetos, ou por vivências, nem sempre facilmente observáveis pelos adultos.

A descontinuidade desse pensamento, naturalmente encontrado na expressão do pensamento das crianças pequenas, é um recurso largamente almejado pelos poetas. Perceber essas características do pensamento infantil e sua expressão por meio da linguagem nos faz pensar na importância da qualidade da escuta e da mediação dos educadores. Cheias de significados e sentidos e repletas de conexões subjetivas, é preciso oferecer condições para que as crianças exerçam seu pensamento e sua expressão, pois é no exercício de explicar o mundo à sua volta, as situações diversas que experimentam com pessoas de bagagens culturais diferentes, que elas se desenvolvem.

2ª etapa – Apresentação e sistematização do projeto
Com a mediação da arte-educadora, foi apresentado às crianças o projeto “Para comer com os olhos”, com fotos de diferentes museus, incluindo o que elas visitariam, explorando o conceito de acervo a partir de coleções. Para este encontro utilizamos o e-bean como um recurso tecnológico que qualifica a apresentação das imagens.

A arte-educadora e assessora Juliana Carnasciali disse o nome do projeto, falou sobre a proposta de comer com os olhos, bem como mencionou o nome do museu que visitariam, indicando que elas poderiam ver muitas obras e, com esse olhar sensível e aprendiz, ampliariam conhecimentos. A metáfora do comer indica que o que comemos entra em nós, de modo que o que for nutritivo permanece, assim como ocorre com a aprendizagem.

3ª etapa – Visita
A visita contou com a participação de educadores do museu, que iniciaram o trabalho numa roda de conversa, na frente do MAM, introduzindo as perguntas sobre o que fariam naquele espaço. Muitas crianças ainda não sabiam o que era um museu, muito menos sabiam sobre o MAM. Os educadores informaram que a visita não seria dentro do museu, que fariam um passeio no Jardim das Esculturas.

De forma lúdica, solicitaram que as crianças fizessem óculos com as mãos, e que olhassem ao redor e que dissessem o que viam. No início, as crianças diziam que viam árvores, prédios, entre outras coisas. O ambiente natural e urbano era sedutor. A partir de então, sempre de forma lúdica, os educadores conduziram a visita e o olhar das crianças para o Jardim. Estavam vivenciando a experiência de um museu a céu aberto. Lembremos que esta era a primeira experiência deles sobre o que é um museu de arte.

Em cada obra, elas eram novamente convidadas a colocar os óculos e a observar os detalhes, como forma, tamanho, cores. Eram convocadas a interagir com as obras, pois podiam passar as mãos, subir, entrar, passar por baixo delas, colocar pedras e outros materiais próprios do jardim dentro das peças, ou sobre elas. Durante esses momentos de interação, os alunos conversavam sobre o que sentiam e o que viam. Uma abordagem bastante contemporânea, coerente com os indivíduos que desejamos formar.

A escolha do MAM e desse acervo específico, o Jardim das Esculturas, é bastante adequado à idade porque possibilita a interação das crianças com as obras. E como as obras estão num jardim, [o que possibilita] subir, descer, entrar e sair pelas obras, possibilitou uma vivência lúdica. (Paloma Dantas – professora do Maternal)

Fotos: Acervo Eduque Nova Escola

Fotos: Acervo Eduque Nova Escola

4ª etapa – Registro após a visita: O que comi com os olhos no museu?
Na escola, após a visita ao museu, numa roda de conversa, as crianças, conduzidas pelas professoras, puderam falar sobre o que mais tinham gostado no Jardim das Esculturas:

Eu gostei de ver as árvores. (Mariana Salviani Pereira)
Eu gostei dos cones porque dava para subir. (Guilherme Kawano Cho)
Eu gostei de jogar pedras dentro dos cones. (Lucas Monzoli Ribeiro)

Depois das conversas, elas foram convidadas a registrar o estudo, desenhando o que tinham gostado e visto. Os desenhos, repletos de histórias, revelam muitas escritas não convencionais sobre o que gostaram e o que estavam representando. O desejo deles de escrever sobre suas descobertas era intenso e foi fato marcante em nosso retorno, visto que ainda estão aprendendo a escrever.

5ª etapa – Registro para divulgação do trabalho aos pais e à comunidade
Entendemos que é fundamental que a professora possa refletir sobre o trabalho desenvolvido e, para isso, o registro das atividades com foco na socialização é bastante importante. Com esse objetivo, as professoras elaboraram um texto sobre o professor-pesquisador, divulgado no site da escola. Outra forma de socializar o trabalho e manter o ambiente como um terceiro educador foi a montagem de murais com fotos e frases das crianças, apresentando as vivências e descobertas.

A visita possibilitou às crianças a apreciação de esculturas e experimentações sensoriais, além de promover a reflexão sobre diversos tipos de materiais e técnicas envolvendo a construção de objetos tridimensionais. As crianças tiveram a oportunidade de tocar as esculturas, aproximar o ouvido para escutar o barulho que os objetos fazem, deitaram no chão para experimentar a obra em sua totalidade e até simularam binóculos para apreciação de detalhes.

Foi uma visita bem produtiva. Fizeram perguntas, como: “Nossa! Isso foi feito pelo artista?”, “Escultura não coloca na parede?”, “Posso entrar dentro do cone?”. No próximo semestre, as crianças construirão suas próprias esculturas. Aguardem! Podemos perceber por esse registro que, além de observar as aprendizagens que aconteceram com o trabalho, a atividade mobilizou pesquisas para o próximo projeto de Arte desse grupo, título será “O que é escultura?”

6ª etapa – Nova visita ao conceito de museu com nova avaliação: O que é um museu?
O próximo passo do trabalho será o momento de revisitar o conceito de museu, momento em que novamente a professora fará a pergunta “O que é um museu?”, e as crianças poderão verbalizar o que compreenderam sobre esse conceito, agora de um novo ponto de vista, considerando a experiência vivida.

Em 2013, quando esses alunos estiverem no Jardim I, e levando-se em conta que a proposta é visitar o Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC), no Parque do Ibirapuera, novamente eles terão a oportunidade de pensar: O que é um museu?, revisitando mais uma vez o conceito e ampliando as possibilidades de compreensão.

7ª etapa – Montagem de mural com percursos, vivências e descobertas
Esse mural tem o objetivo de apresentar a toda a comunidade escolar, pais, demais educadores e visitantes o percurso do projeto. Ele é organizado pela arte-educadora Juliana Carnasciali, que seleciona fotos com boa visualização das etapas da visita e vivência no ateliê do museu, como aconteceu com os alunos do 3º ano. Os pequenos, nesse momento, são observadores apenas. O mural fica num ambiente de passagem, e todas as vezes em que eles passam por ali mostram as fotos deles no Jardim das Esculturas no MAM.

Conclusão
O envolvimento de toda a escola em torno dessa proposta revelou o potencial de aprendizagem dos educandos, dos educadores e da comunidade. Vale lembrar que foi preciso considerar as especificidades, as particularidades e a essência de cada idade de todos os alunos. Foi decisivo também para a proposta envolver os educadores no processo de aprendizagem e considerar a ampliação cultural de curadoria, uma vez que é necessário selecionar os museus a serem visitados.

A elaboração desse projeto contemplou a diversidade de interesses da equipe escolar, dos pais e da comunidade aprendente, sem deixar de lado as múltiplas linguagens, os registros e as reflexões.

A constatação da ampliação cultural e artística dos familiares pode ser percebida em relatos como o de Karina A. Portillo Carneiro, mãe de Pedro Portillo Carneiro (3 anos – Maternal) e de Caio Henrique Portillo Carneiro (8 anos – 3º ano do Ensino Fundamental):

Acho importante a escola proporcionar atividades que valorizem a arte e a cultura. Meus filhos chegaram em casa muito animados contando o que viram nos museus. Achei inte ressante, pois não costumamos fazer esse tipo de passeio em família, e com o incentivo da escola, meus filhos compartilharam as novidades e o interesse, fazendo com que pudéssemos rever nossas opções de passeios em família nos fins de semana.

Pudemos, ainda, observar a aprendizagem dos pequeninos e dos maiores, pois, a partir do questionamento “O que é esse projeto: Para comer com os olhos?”, tivemos como explicação de Camillie Kuramochi, em sua forma natural de pensar, é “olhar com atenção” (depoimento de sua mãe) e de Letícia Campanerut Ferreira Vianna, aluna do 3º ano do Ensino Fundamental, de forma mais elaborada:

Desenho Amanda

Desenho Amanda

O projeto “Para comer com os olhos” significa que quando olhamos artes, gravamos, e a palavra comer é que quando comemos levamos as coisas para dentro do nosso corpo. E então nós vamos comer as artes nesse projeto e vamos levar isso para dentro do nosso corpo.

“Para comer com os olhos” que, para os adultos, pode ser compreendido com estranhamento, para as crianças nasce como um convite para conhecer coisas novas, como explica a mãe de Camillie:

Sou fã dos passeios, principalmente aqueles voltados para museus e exposições. A Camillie repete constantemente a importância de se “comer com os olhos”, de observar com atenção, de conhecer coisas novas. O exercício foi tão intenso que ela observou até o trajeto do ônibus, pois sempre que passamos pelo Obelisco, ela diz: “Mamãe, o MAM é pertinho daqui!”. Fantástico este trabalho, muito estimulante para a minha Camillie.
Luciane Ueda Kuramochi (mãe de Camillie Kuramochi, aluna do Maternal)

O ato de ensinar e o de aprender exige reflexão constante, pois é por meio dela que avaliamos o planejado e o que foi realizado e, a partir daí, propomos a continuidade do processo. Essas ações criadas e recriadas no próprio exercício diário são avaliadas e replanejadas, possibilitando desenvolver um trabalho voltado à ação-reflexão-ação.

Nesse movimento reflexivo, é importante ressaltar a declaração da arte-educadora Juliana Carnasciali:

Hoje temos crianças expandidas para o contato e interesse com a arte, pais dispostos a se envolver cada dia mais com esse assunto e equipe pedagógica imersa na linguagem que mais liberdade de escolha e criação dispõe ao ser humano: a arte.

(Patrícia Cintra, diretora pedagógica da Eduque Nova Escola, em São Paulo–SP)

1SANTAELLA, Lucia. In O admirável estético e ético como ideal supremo da vida humana. Encontros Estéticos: Coletânea de textos. Jorge Anthonio e silva (org). Caixa Econômica Cultural. 2005. p.130-131.

Professor-pesquisador

Nessa perspectiva, as proposições pedagógicas trazem à tona um professor-pesquisador que se reinventa, que tem uma atitude investigativa diante dos diferentes saberes com que irá se deparar. Um professor-criador dos próprios percursos de aprendizagem, autor do seu pensar/fazer pedagógico com a escolha de caminhos que possam abrigar e expressar a coautoria com os alunos.

O ensinar-aprender decola pelas asas da invenção, por um tipo de ação que parte de uma ideia, mas que, ao investigá-la, cria, antes, o modo de investigação, investigando também o investigante, naquilo que ele sabe e no modo como sabe.

Para que essa situação se faça presente, a Eduque entendeu ser importante investir também na formação continuada de seus educadores e, para isso, organizou um programa de assessoria de Arte no qual toda a equipe passa por experiências com percursos de “arte educar”, conectados com a atualidade.

Trabalhar desse modo, no aprender-ensinar arte, representa trabalhar na criação pessoal, tanto de professores como de alunos, e por isso mesmo é um trabalho que se dá no plano do devir.

A proposta da escola é criar encontros de formação de arte para as professoras de modo a torná-las mais preparadas para serem professoras propositoras. Acreditamos que tendo um profissional protagonista potencializamos a construção do saber. O desenvolvimento desse desejo teve como primeira etapa despertar o olhar sensível. Ainda nesse foco, um ano depois, surgiu, como uma nova ação, o projeto “Para comer com os olhos”, uma proposta de nutrição estética engajada, envolvendo leitura visual, fruição de arte, reflexão, registro e construção de conhecimentos específicos da área, bem como aproximação ao patrimônio estético-cultural da cidade a partir de contatos acumulativos mediados em museus, envolvendo toda a escola em um estudo do meio que não termina onde parece que começou. Ambiências, nomenclaturas, histórias e entrelaçamento de culturas fazem desse contexto estético-pedagógico um terreno fértil ao aprender em processo, característica que a arte precisa e propõe.
(Juliana Carnasciali – arte-educadora da Eduque)

Processos em Artes Visuais

Quando trabalhamos no plano do devir, o que conta é a processualidade, tanto do professor como dos aprendizes. Falamos do movimento processual da aprendizagem porque aprender-ensinar é busca, é pôr-se em movimento, é lançar-se em um caminho desconhecido, movido por situações concretas geradoras de experiência. Torna-se ato de investigação, de criação. Ressurge, desse modo, algo que está desaparecido da escola: o saber da experiência.

Nesse sentido, aproximamo-nos do conceito de saberes da experiência de Jorge Larrosa. O autor, para construir esta ideia de saber, constrói inicialmente uma de experiência: (…) é aquilo que nos passa, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao passar-nos nos forma e transforma”. [o saber da experiência seria:] … o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao largo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece.”

Se a experiência é “o que nos acontece” e o saber da experiência é o sentido que damos a este acontecido em nós, “trata-se de um saber finito, ligado à experiência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular (…), por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente e pessoal.”

Podemos dizer, assim, que a processualidade é o mapa do saber da experiência estética de professores e aprendizes, traçada por caminhos (movimentos) que buscam na Arte, como território da invenção, encontros sensíveis e criadores que possam afastar visões estereotipadas ou visões reduzidas do mundo, diminuindo o distanciamento entre arte e vida.

“Ideias, intuição, imagens, mobilização interna, novas significações. A arte é possibilidade de estabelecer relações – troca de percepções e reflexões, compartilhadas no tempo/espaço da experiência, implica a construção individual e coletiva dos sentidos.”
(Stela Barbieri, artista plástica, educadora, curadora do Educativo da Fundação Bienal de São Paulo)

Ficha Técnica

  • Eduque Nova Escola
    Endereço: Avenida Bosque da Saúde. CEP: 04142-082 – São Paulo – SP
    Tel.: (11) 5581-0123
    Site: www.novaescola-eduque.com.br
    Direção pedagógica: Patrícia Cintra
    E-mail: patrícia.cintra@novaescola-eduque.com.br

Para saber mais

Livros

  • Interações: onde está a arte na infância?, de Stela Barbieri. Coleção Interações, Editora Blusher, 2012.
  • Nota sobre a experiência e o saber da experiência, de Jorge Larrosa. In: Leituras SME. Textos-subsídios ao trabalho pedagógico das unidades da Rede Municipal de Educação de Campinas/Fumec, n. 04, jul. 2001.
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