Literatura e formação de repertório

Por meio da leitura de diferentes obras, crianças ampliam o conhecimento sobre literatura e aprendem a indicar os livros de que mais gostaram

Formar leitores é uma tarefa a ser realizada principalmente pela escola, e é no contato frequente com variadas obras que as crianças vão conhecendo títulos, autores, ilustradores; identificando suas preferências; definindo critérios de escolha; construindo novos sentidos para os textos lidos, compartilhando-os. Por meio das diferentes modalidades de leitura (ler, escutar leituras e comentar), elas constroem seu percurso leitor e, pouco a pouco, tornam-se parte de uma comunidade de leitores capazes de seguir a leitura de quem lê em voz alta, expressar as impressões causadas pelo texto lido, perceber diferenças entre as obras e o modo como são lidas e selecionar as que mais lhe agradam.

Trabalhar com a escrita de indicações literária com crianças de 4 e 5 anos é oferecer-lhes a oportunidade de entrar em contato com o livro de modo diferente.

Ao ler para sugerir que outros tenham contato com a obra, as crianças colocam em jogo comportamentos leitores complexos, pois é necessário olhar o livro como um todo para justificar sua leitura, observando as características do portador, a qualidade estética da edição, o estilo do autor, a extensão da obra, as características dos personagens, o enredo, as imagens etc., relacionando esses elementos ao destinatário do texto a ser escrito: o leitor da indicação.

Fotos: Lia Olival Costa e Márcia Félix

Fotos: Lia Olival Costa e Márcia Félix

Livros para as crianças e famílias
A preocupação com a leitura e a escrita é um dos fatores que marca a organização do Pró-Saber SP que, desde o início do atendimento, teve preocupação com a construção de uma prática que garantisse o acesso aos livros para as crianças e seus familiares. É importante ressaltar que na Comunidade de Paraisópolis, em São Paulo, vivem aproximadamente 65 mil habitantes, dos quais 40% aproximadamente são considerados analfabetos funcionais, ou seja, não utilizam com desenvoltura a leitura e a escrita. Dessa forma, uma das primeiras ações a ser instituída ao longo desses anos era a informação às famílias, na inscrição e na matrícula, de que as crianças levariam livros para casa.

Essa atividade permanente e a crença de que só o acesso poderia garantir a aprendizagem do cuidado com os livros levaram cada professora a estabelecer uma dinâmica própria para o empréstimo de livros. Atualmente o empréstimo é semanal, e em algumas turmas as crianças chegam a levar 2 a 3 livros por semana.

A leitura no dia a dia
Garantimos também na rotina com as crianças um momento dedicado à leitura, logo após o recreio. E em nossos encontros com professores e funcionários discutimos e realizamos leituras e indicações de livros. A crença de que o processo de alfabetização se constrói pelo contato constante com uma diversidade de textos e que gostar de ler é uma construção diária mobiliza o nosso fazer.

Assim, todas as manhãs, as professoras dedicam um tempo para conversar com os pais ou responsáveis sobre os livros levados para casa. A intenção não é obrigar a ler, mas conversar sobre essa prática, saber se a criança leu, se leram juntos, se viram as imagens, se gostaram do livro, se querem levar outro livro. Esse investimento cotidiano reverte-se em muitos ganhos, entre eles o de se tornar mais um instrumento que nos aproxima da comunidade, pois partilhar do encantamento que as histórias suscitam estabelece outro tipo de ligação, para além dos problemas e das responsabilidades. Portanto, ao planejar o projeto de produção de indicações literárias1, tínhamos boa parte do caminho trilhado, pois havia conhecimento e familiaridade das turmas, dos professores, de funcionários, das crianças e dos pais com os livros.

Aprendemos que a possibilidade de ter um livro de boa qualidade, com ilustrações bem-feitas e histórias interessantes, agrada a todos. Descobrimos também que é preciso ter acesso a bons modelos de produção literária para construir o gosto e definir critérios estéticos que orientam a escolha de novas obras. Nessa troca todos ganharam: as crianças aprenderam que quanto melhor é o livro mais ele é usado; as professoras aprenderam a negociar, cobrar, acolher e consertar os livros; as famílias aprenderam que ler com os filhos é uma diversão. Como a leitura possibilita inúmeras interpretações, ela permite a flexibilização do modo de entender as questões da vida e a observar outros pontos de vista. Como num comentário sobre o livro A casa dos beijinhos, de Claudia Bielinsky: “Eu achava que era uma casa cheia de doces”, disse uma mãe. O contato com as pessoas por meio dos livros nos torna mais conscientes de quem somos, de quem são nossas crianças, nossas famílias e do mundo em que vivemos.

Projeto: construção coletiva
A construção do projeto coletivo se deu em uma reunião com todos os professores, e das atividades vividas pudemos enumerar os objetivos gerais que orientariam os projetos de cada turma. A experiência de construir um trabalho dessa forma requer o comprometimento de todos com um produto que é da escola. Esse compromisso amplia o que cada um sabe, possibilitando a troca entre os professores. Nas reuniões, costumávamos brincar que estávamos ficando mais inteligentes. Pura verdade, pois uma atividade ao ser desenvolvida e adaptada para várias turmas, ao ser retomada ganhava novos significados, acrescidos de saberes e de formas de proceder não pensados anteriormente. Foi dessa forma que idealizamos a inauguração da biblioteca, evento que uniria o trabalho de indicação e de empréstimo de livro que já fazíamos.

A atividade inicial foi organizar semanalmente uma ação na qual um livro seria indicado pelos grupos de crianças. Cada grupo criou um painel no qual deixava por escrito o livro indicado. As professoras liam para outras turmas e, com base na indicação, convidavam o grupo para falar sobre o livro ou lê-lo. Uma turma lia para outra, enviava bilhetes sobre um livro descoberto. Isso foi se tornando parte do cotidiano, e assim se constituiu o acervo predileto de cada turma, que saía da biblioteca para o parque, para o caramanchão, para as árvores. A proposta era convidar os pais para conhecer a biblioteca e, assim, descobrirem os livros “mais queridos” de cada turma.

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Condições didáticas criadas
De acordo com as professoras Laura, Lia e Márcia Félix, que acompanharam um dos grupos, “logo nas primeiras atividades do projeto percebemos que o investimento na leitura diária gerou grande conhecimento do universo literário. As crianças escolhiam e sabiam qual obra queriam levar para casa. No entanto, a ideia de indicar um livro e justificar essa escolha ainda era estranha ao grupo.”

Usamos uma estratégia afetiva para iniciar as crianças nas práticas da indicação. Nas primeiras rodas de conversa sobre os livros levados para casa, após os comentários iniciais, as crianças foram questionadas: Quem de nossa turma vocês gostariam que levasse esse livro? Por quê? As primeiras indicações eram de ordem afetiva, justificadas pelas parcerias nas brincadeiras conjuntas. O indicado era sempre um amigo, e o motivo era a amizade, o vínculo que os unia. Concluímos que as relações de afeto estabelecidas com o colega para o qual indicavam um livro eram um bom ponto de partida. Entretanto, no percurso do projeto, ampliamos as aprendizagens e levamos as crianças a perceber critérios diferenciados para a escolha, como o gênero, o assunto, a qualidade da ilustração, e elementos da linguagem empregada pelo autor, como o caráter inusitado ou engraçado do texto.

Com esse novo desafio, as crianças começaram a escolher os livros para levar para casa, para ler e conversar na roda de devolutiva dos livros, enfatizando o que lhes chamava a atenção e os atraía ao ler um texto literário. As indicações recebidas de outras turmas e dos funcionários e a organização dos títulos preferidos para a inauguração da biblioteca alimentaram e contribuíram para que as crianças aprendessem ainda mais sobre o gênero indicação literária e pudessem perceber outros elementos que poderiam justificar a escolha de um livro. Alguns alunos passaram a citar trechos do texto que acharam relevantes; outros argumentaram dizendo que o tema era interessante; outros, ainda, centraram-se na presença de alguns personagens queridos como critério para indicação do livro ao colega.

O manuseio e a leitura de catálogos de editora e, especialmente, a leitura de um livro de indicações escritas por crianças de outra escola ajudaram a ampliar o repertório da turma, oferecendo-lhes bons modelos de textos que poderiam apoiar o trabalho de escrita a ser realizado posteriormente. Ao observarmos os textos elaborados por crianças da mesma faixa etária e evidenciarmos os critérios que justificavam as indicações, observamos diferentes motivos que podem apontar a qualidade de uma obra.

Com isso, as crianças foram desafiadas a escrever suas indicações. Primeiro, coletivamente e, depois, individualmente, sempre tendo a professora como escriba. Nesse momento, com a ajuda da classe, as crianças perceberam que não é preciso narrar todo o texto para indicá-lo a alguém, e que apenas dizer que o livro é bom ou legal, sem explicitar os motivos, não oferece bons elementos para que outros leitores possam antecipar o conteúdo do texto e, assim, despertar o interesse pela obra.

Pouco a pouco, os textos começaram a avançar e a escola foi tomada por indicações espalhadas em todos os lugares. Professores e funcionários falando sobre as obras lidas, crianças entregando bilhetes aos professores para que lessem os livros apreciados por eles, turmas comentando entre si as indicações recebidas pelos colegas. Percebemos que, para além das impressões compartilhadas nessas situações de leitura, ao tornarem-se parte de uma comunidade de leitores, os alunos vão construindo conhecimentos implícitos sobre os gêneros, os autores, os ilustradores que, aos poucos, vão ajudando-os a criar seus critérios de escolha, justificando-os.

Com isso, a comunidade escolar percebeu que a leitura é uma experiência que nos aproxima e nos faz compartilhar interesses comuns. E que ao compartilharmos indicações literárias traçamos nosso percurso leitor, recriando nossa história, ressignificando-a, sempre tendo por base a palavra escrita, o mundo e as relações estabelecidas.

(Denise Nalini, coordenadora pedagógica do Pró-Saber SP, formadora do Instituto Avisa Lá, ambos localizados em São Paulo-SP, e consultora nas áreas de Artes, Educação Infantil e Cultura; Laura Momberg, Lia Olival Costa e Márcia Félix, professoras no Espaço Nossa Casa; e Maria Cecília Lins, diretora geral do Pró-Saber)

1Esse projeto nasceu do compromisso do Pró-Saber SP com a criação de contextos significativos para a alfabetização das crianças das classes populares associado ao desejo da comunidade de Paraisópolis de selecionar a leitura como tema para a Mostra Cultural de 2011.

Ficha Técnica

  • PRÓ-SABER SP
    Endereço: Rua Manoel Antonio Pinto, 974 – Paraisópolis. CEP: 05663-020 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3739-3435
    E-mail: espaconossacasa@terra.com.br
    Diretora geral: Maria Cecília Lins
    E-mail: mariacecilialins@gmail.com
    Professoras: Laura Momberg, Lia Olival Costa e Márcia Félix
    E-mails: laura.momberg@msn.com; liaolival@uol.com.br e marcia.afelix@terra.com.br
    Site: http://prosabersp.org.br/

Para saber mais

Livros

  • A formação do leitor literário, de Teresa Colomer. São Paulo: Global, 2003. Tel.: (11) 3277-7999. Site: www.globaleditora.com.br.
  • Contando histórias, formando leitores, de Ana Maria Machado e Ruth Rocha. Campinas: Papirus, 2011. Tel.: (19) 3272-4500. Site: www.papirus.com.br.
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