Chita no Carnaval e no São João

Um simples tecido pode ser o mote para desencadear um bom trabalho com crianças sobre diversidade cultural e suas manifestações artísticas na música, na dança e nas artes visuais brasileiras
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Painel coletivo das festas de São João (fotos: arquivo da escola Grão de Chão)

No início do ano letivo, é importante planejar ações pedagógicas para conhecer as crianças, deixando espaço para atividades significativas que encerrem também muitas aprendizagens. Em fevereiro, em geral, além da adaptação e dos aspectos de incentivo à socialização, outro tema que sempre vem à tona é o Carnaval. Com ênfase na música e na dança, a intenção é contextualizar essa comemoração fazendo recortes das mais diferentes manifestações populares que acontecem nesse período no Brasil. As artes visuais se beneficiam na construção de fantasias, adereços e cenários, com base em pesquisas que envolvem diferentes materiais e suportes.

Em 2007, iniciamos um trabalho com turmas de 2 a 6 anos, com base no tecido chita, e finalizamos em junho, por ocasião dos festejos juninos. Os projetos Carnaval e Festa Junina tiveram como objetivo integrar a comunidade à escola e fazê-la participar e contribuir com temas que tratam, com propriedade, da diversidade cultural e de suas expressões artísticas. Outra meta importante foi fazer com que os pequenos estabelecessem relações entre o modo de vida de seu grupo social e o de outros, demonstrando curiosidade, formulando perguntas e manifestando opiniões sobre os acontecimentos. Visamos promover a valorização do patrimônio cultural e despertar o interesse por conhecer diferentes meios de expressão. Para isso, foram garantidas atividades com histórias, brincadeiras, jogos, danças e canções sobre as tradições da cultura brasileira.

Muitas alegorias e adereços
A chita vem da época das grandes navegações, quando as potências européias empreenderam a conquista de outras terras e se depararam com o tecido na Índia. Como tem um estampado florido, colorido e bem alegre, até pouco tempo atrás era muito usada pelas pessoas que viviam no campo em ocasiões especiais como festas, casamentos e bailes. As famílias percorriam longas distâncias para se reunir, trocar prendas e celebrar a colheita que acontecia em junho. A tradição do uso desse tecido manteve-se quase obrigatória nas Festas Juninas, e em muitas localidades do Brasil, como em Recife (PE) ou São Luís do Paraitinga (SP), era presença certa no Carnaval também.

Com base nessas informações, pedimos aos pais ou responsáveis um corte com dois metros – um para ficar na escola e o restante para que a família confeccionasse uma fantasia. Com os retalhos em mãos, os professores propuseram vivências corporais e brincadeiras, focando o movimento e a sensibilização de todos com o material. As crianças usaram o pano para imitar um pássaro, voando com as asas abertas pelo espaço da sala para depois construir um ninho e se acomodar, tudo ao som de uma música suave. Elas também puderam usar o material para forrar o chão ao se deitarem e, depois, rolarem. Não ficou de fora o tradicional esconde-esconde utilizando o tecido, nem a brincadeira de arrastar um colega sentado sobre a chita pelo espaço. Aos poucos, os pequenos passaram a se vestir criando fantasias e adereços.

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A observação das flores de chita influenciou a produção das crianças

Letra na ponta da língua
Apresentamos músicas com ritmos carnavalescos por meio de CDs, que também foram entoadas por todos os adultos envolvidos com o trabalho. No repertório, as famosas marchinhas Mamãe Eu Quero, A Jardineira, Pastorinhas e uma muito especial composta pelos pais músicos Ari Colares e Carolina Trevisan para a formatura do antigo pré, que virou um hit em nossa festa. Conheça a letra:

“Quando entrei aqui no Grão, era pequenininho
Tudo era tão grande, eu parecia um feijãozinho
Agora que eu cresci
Tudo é muito diferente
O que foi que aconteceu?
Parece que encolheu!
Quem foi que encolheu o Grão?
Quem foi que encolheu o Grão?
Foi a fulana, foi a sicrana
Ninguém me responde não
Ninguém me responde não”

O projeto também possibilitou a exploração de diferentes instrumentos de percussão, como tambores, pandeiros, triângulos, chocalhos e reco-recos. Isso acontecia uma vez por semana, durante as oficinas de música. Com a experimentação de sons produzidos por panelas, caixas, latas e pedaços de madeira, foram construídos tambores e chocalhos. O repertório foi contagiando todos. As canções carnavalescas passaram a integrar os momentos de roda e as atividades em sala. Isso contribuiu para a memorização das letras. Associados à música, a dança e os movimentos corporais foram possibilidades efetivas para o desenvolvimento motor e rítmico dos pequenos. A partir desse repertório, eles se tornaram bons improvisadores, cantando, misturando idéias e trechos conhecidos para recriar, adaptar e inventar composições. O trabalho com as canções, com os materiais sonoros e com os instrumentos musicais tornou o grupo capaz de ouvir, perceber e discriminar sons diversos, fontes sonoras e produções. Assim, foi possível explorar conteúdos como timbre, altura, duração e intensidade dos sons, bem como desenhos melódicos1.

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Criando fantasias com retalhos de chita

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As roupas recortadas e coladas favorecem o desenho figurativo

Água, farinha e tinta
O planejamento das oficinas de jogos não deixou de lado algumas brincadeiras como o entrudo, que consiste em jogar água uns nos outros, seja por meio de pequenos balões cheios do líquido, seja com esguicho, bisnaga ou baldes. Também foi criado o Bloco dos Lambuzados, uma oportunidade para que todos se melecassem com lama, farinha e tinta. As crianças também participaram de oficinas de máscaras e adereços utilizando a chita. Para ampliar as formas de representação e contextualizar o Carnaval de rua, os professores levaram para suas turmas imagens do evento que acontece em São Luís do Paraitinga e possui forte tradição na confecção de máscaras de papel machê, fantasias e bonecos de mamulengo. Inspiradas nesse exemplo, cada uma criou a própria indumentária.

Na sexta-feira que antecede o Carnaval, preparamos a escola para receber os pais para um evento que batizamos de Baile da Chita. Retalhos estampados foram pendurados pelo quintal para decorar e criar um ambiente bem carnavalesco para as famílias, que foram convidadas a participar das danças e das cantorias uma hora antes de terminar o período escolar. Ao chegarem, todos se serviam dos pedaços de tecido pendurados e inventavam suas fantasias. Muitos amarraram tiras na cabeça ou fizeram turbantes, enquanto outros improvisaram gravatas, cintos, capas e saias. Confetes e serpentinas foram jogados nos que desfilavam em cortejo pelo quintal com suas fantasias bastante originais e seus instrumentos musicais.

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Casas inspiradas nas fachadas mineiras e obras de Volpi

Mesmo pano, outra festa
Em maio, próximo à Festa Junina, uma das funcionárias, muito habilidosa no corte e costura, confeccionou várias saias e alguns coletes com o tecido que sobrou. As roupas foram utilizadas para complementar outro projeto. Para animar a Festa Junina, trabalhamos nas oficinas danças e músicas do coco, cacuriá (tradicionais nas regiões Norte e Nordeste) e samba-de-roda2. Durante todo o ano passado, realizamos encontros de formação com a equipe de educadores nos quais dançamos e cantamos juntos. Foi uma experiência muito prazerosa. A equipe se sentiu mais segura em relação aos conteúdos e pôde compartilhar idéias e sugestões para o planejamento coletivo. As aulas recebidas foram gravadas em vídeo e serão referências para futuros trabalhos. Intensificaram-se as oficinas de artes visuais com referência aos artistas naïfs3, como José Luís Soares, Altamiro e Alcides da Fonseca, e de artistas consagrados da arte moderna, como Alfredo Volpi, Djanira e Alberto da Veiga Guignard. Papel de seda, argila, madeira, palha, sementes e retalhos de chita foram valorizados e muito explorados durante as produções. Desenhos, pinturas e colagens foram feitos para compor os murais coletivos e enriquecer a construção de duas casas de papelão que serviram para brincar. Ornamentos como luminárias, balões e bandeiras também foram confeccionados pelos pequenos e expostos na festa.

Nas oficinas de teatro, a leitura de contos tradicionais ligados à crendice popular e e de cordéis despertou ainda mais o imaginário infantil. A prática do reconto possibilita o exercício de criação de novas histórias e a dramatização. As letras das músicas cantadas também foram transformadas em histórias com a ajuda das crianças e foram trabalhadas de maneira interdisciplinar entre as linguagens de música e teatro.

(Lucília Franzini, diretora e coordenadora de projetos de artes visuais da Escola Grão de Chão, em São Paulo – SP)

1Texto elaborado por Maria Cecília Franzini, diretora e coordenadora de projetos de música da Escola Grão de Chão

2Uma fonte importante para o desenvolvimento do trabalho com coco, cacuriá e samba-de-roda foi a professora e pesquisadora de músicas e danças populares brasileiras Sílvia Lopes.

3Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss, diz-se de certo tipo de pintura, escultura etc. espontânea e autodidata, desvinculada de escolas convencionais, que resulta em composições primitivas, geralmente detalhadas e de fácil compreensão.

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Casa construída e decorada com tecido

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Se eu fosse pequenina do tamanho de um botão… A parlenda inspira a colagem de tecidos

Ficha técnica

Escola Grão de Chão
Rua: Tanabi, 275 – Água Branca – CEP: 05002-010 – São Paulo – SP
Tels.: (11) 3672-5926 / 3673-0208
E-mail: escola@graodechao.com.br
Site: www.graodechao.com.br
Diretoras: Lucília Helena Franzini, Maria Cecília Franzini, Paula Antunes Ruggiero

Equipe de professores e auxiliares que participaram do projeto:

Oficinas de Música: Cristiano Costa (Carimbó), João Cecílio, Mariana Mantovani, Fábio Lucio, Karina Ramos, Mércia Santos, Luciene Souza, Ana Carolina Cruz

Oficinas de Teatro e Dança: Carolina Souza, Rita Andrade, Karina Araújo, Priscila Souza, Raquel Endo

Oficinas de Artes Visuais: Silvia Haddad, Débora Salomão, Marina Cardoso, Paola Assolant, Luciana Alves, Roseli Silva, Josimeire Santos

Confecção de fantasias: Cristina Melchior.

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Chita como suporte para esculturas

Para saber mais

Livros

  • Contos Tradicionais do Brasil, de Luís da Câmara Cascudo – Ed. Global – Tel. (11) 3277-7999.
  • Pavilhão da Criatividade – Memorial da América Latina, de Fábio Magalhães e Maureen Bisilliat – Ed. Empresa das Artes – Tel. (11) 3797-2200.
  • Que Chita Bacana, de Renata Mellão e Renato Imbroisi – Ed. A Casa – Tel. (11) 3814-9711.
  • Naïfs – Bienal Naïfs do Brasil 2004 – Publicação Sesc-São Paulo. http://www.lojasescsp.org.br/sesc/loja/
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Brincadeiras de Carnaval – Bloco dos Lambuzados

CDs

  • Baião de Princesas – Casa Fanti-Ashanti, do Grupo A Barca – Gravadora CPC-Umes, Brasil.
  • Marchinhas e Quadrinhas Juninas, Luís Gonzaga – Acervo Especial. BMG-Ariola Discos Ltda.
  • MPBbaby – Músicas para Pais e Filhos – Carnaval (vol. 8), Moda de Viola (vol. 7) e Forró (vol. 9) – Gravadora MCD.
  • Brasil – Samba e Carnaval – Banda Folia Brasileira – Brasis.
  • O Melhor do Carnaval – Banda Rio Ipanema.
  • De Bloco em Bloco – As Encantadas Marchinhas do Carnaval de São Luís do Paraitinga – CD independente.
  • Cacuriá – Pé no Terreiro, produção e direção musical de Henrique Menezes e Emerson Boy – CD independente.
  • Selma do Coco – Grupo Cultura Viva – CD independente.
  • Samba de Roda – Patrimônio da Humanidade – Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia, Amafro e Iphan.
  • Como é Bom Festa Junina – volume 1 – Gramofone.
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As criancas de 4 anos produziram seu Bumba- meu-boi

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