A prática de registrar com crianças de 1 a 3 anos

Um diário de sala compartilhado com as criancas e suas famílias guarda a memória do grupo e revela a própria identidade
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Produção feita com a participação dos pais

Registrar faz parte do projeto pedagógico da Grão de Chão1, escola em que trabalho. Cada grupo tem seu diário de sala e nele são registrados os acontecimentos mais significativos vivenciados pelas crianças, tais como uma brincadeira muito divertida, eventos realizados na escola, algumas atividades feitas com outros grupos, as receitas elaboradas, as curiosidades ou descobertas, os aniversários, entre outros. Há espaço também para os registros mais individuais, importantes para uma ou mais crianças, como o nascimento de um irmão, por exemplo. Sou professora de crianças de 1 a 3 anos (G1/G2), e é comum os pais lamentarem o fato de os filhos, pela oralidade pouco desenvolvida, quase não contarem em casa o que fazem na escola. Percebi que pelo diário de sala seria possível compartilhar com eles as vivências de seus filhos e do grupo a que eles pertencem, bem como favorecer a construção da identidade de cada um e a percepção do outro, alimentando o sentimento de pertencimento ao grupo.

O diário de sala é elaborado na escola e, nos fins de semana ou em feriados, é enviado à casa de uma das crianças do grupo para que os pais e elas não apenas olhem, conversem e recuperem a história contida no diário, mas registrem alguma vivência da criança com a família, para que seja compartilhada com o grupo.

Os primeiros registros
A significação desse diário pelas crianças foi sendo construída à medida que foi ganhando “corpo”. Nos primeiros registros, recuperamos algumas vivências do grupo consideradas mais marcantes. Nesse momento, assumi o papel de escriba e fui trazendo os elementos mais importantes que queria deixar registrados. No entanto, as crianças pouco se envolveram com a proposta e não fizeram contribuições. Eu sabia que, naquele momento, me colocava como modelo para o grupo, ajudando-o a construir, passo a passo, uma significação desse diário. Aos poucos, os registros foram compartilha-dos, olhados e revistos, e as crianças começaram a fazer pequenos comentários, aqui e acolá, referentes à construção do relato, em nossas rodas de registro do diário de sala, cuja participação tem se intensificado a cada dia.

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Fotos: Mariana Isnard Carneiro e Mariana Mantovani Hidalgo

Pais e filhos
A circulação do diário de sala pelas casas das famílias fez com que as crianças, auxiliadas pelas imagens e tendo por leitores os pais, relembrassem e contassem algumas vivências pessoais, bem como as dos colegas do grupo e, com isso, trazendo “um pouco da escola” para dentro de casa. A participação dos pais confirmou que o diário não só proporcionou vivências agradáveis – “Foi muito legal ver o livro com ela e fazer um registro. Ela viu que uma criança carimbou as mãos com os pais e também quis carimbar as suas” –, como também possibilitou perceber o quanto ele fazia sentido para seus filhos: “Não consegui ver o livro com ele até o final. Ele queria me mostrar tudo várias vezes e não me deixava virar as páginas”. (Depoimentos de pais).

De volta à escola

Os registros feitos pelos pais foram variados e revelaram a singularidade de cada criança. Nosso diário de sala foi se constituindo nessa diversidade, tendo por eixo estrutural o desejo de dar voz à criança, para que ela pudesse falar de suas aprendizagens e compartilhar suas descobertas. Os registros foram importantes para que as crianças se lembrassem do que haviam feito no período em que o diário esteve em sua casa, fazendo com que as crianças recuperassem esses momentos e os compartilhassem oralmente com o grupo. As colaborações revelam lembranças afetivas, que tornam o momento de olhar o diário em sala, com o grupo todo, especial, carregado de sentimentos agradáveis. As crianças se veem como autoras das histórias pessoais e do grupo. Por vários meses, assim que pegava o diário, uma criança dizia “o papai, o papai”, referindo-se ao registro que havia feito com o pai. Atualmente, quando abro o livro, as crianças falam: “Essa foto é minha”, “Esse é o meu pé, né?!”, “Olha, eu tô descansando”. E a cada página virada, sempre há uma frase diferente a revelar sua construção, sua identidade e seu sentimento de pertencimento ao grupo.

Cada criança está presente, nesse diário, por meio do desenho que fez, pelas fotos ou pelos registros feitos com os pais ou comigo. Ao mesmo tempo que ele retrata percursos pessoais, revela também a constituição do grupo, na medida em que, ao vivenciarem experiências comuns e ao compartilharem suas experiências pessoais, relacionam-nas com as dos colegas.

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“No sábado, dia 18/10 foi a exposição de arte do Grão. Muitas crianças do grupo vieram e trouxeram as mães, os pais, os tios, os primos e os avós.” (Diários com as produções feitas pelas crianças da Escola Grão de Chão)

Trabalho com a oralidade
O diário de sala proporciona ótimas rodas de conversa. O fato de fazer sentido para as crianças e de contar com recurso visual (fotos, desenhos, imagens…) para apoiar as falas, possibilita maior envolvimento delas durante a conversa. Por meio dessa rotina, as crianças tornam-se conscientes do processo da história que estão vivendo. A roda de conversa, a partir do diário de sala, é um momento valioso para se trabalhar a linguagem oral das crianças. Ela ajuda a organizar o pensamento e as falas das crianças. Desde pequenas, as crianças devem participar de situações reais de conversa. Assim, aprendem a escutar o outro, a esperar a vez de falar, a olhar seus interlocutores, assim como a usar a voz adequadamente.

Roda de conversa sobre o registro feito por uma família
Eu – Esse fim de semana a Esther levou o livro de registro para casa.
Maíra – A mamãe carimbou o meu pé.
Giuliana – A mamãe também carimbou o meu pé. Ela passou tinta e depois saiu.
Eu – Vamos ver se a mãe da Esther também carimbou o pé dela?
Esther – Não carimbou.
Eu – Foi esse o registro que você fez com a mamãe?
Esther – Eu fiz com a minha mãe.
Eu – Eu vou ler para vocês: “Esther, mamãe e papai tiveram um fim de semana muito legal.” Foi legal o seu fim de semana?
Criança – Foi muito legal!
Eu – O que é isso que você colou?
Esther – O Vila Sésamo2.
Rafael – Eu “tem” “mi” “ca”
Eu – Você tem na sua casa?
Rafael – É.
Eu – Você tem o filme ou vê na TV?
Esther – Na TV.
André – Sabia que eu vejo na minha TV?
Eu – Quem já viu o Vila Sésamo?
Maíra – Eu já vi também..
Manuela – Eu já vi.

André aponta para uma figura que estava colada na folha e pergunta para mim

– O que é isso?
Eu – Pergunta para a Esther.

André vira para Esther e pergunta – O que é isso?
Esther – É uma casinha.
Eu – Onde você encontrou essa casinha?
Esther – Na loja.
Eu – E você quis colar aqui?
Esther – É.
Eu – Deixa eu ler o que está escrito aqui: “Esse brinquedo é muito legal”. É um brinquedo de montar?
Esther – É de montar.
Eu – E foi você que montou ou você viu em uma revista?
Esther – Eu achei em uma revista.
Eu – E você tem esse brinquedo?
Esther – Tenho
Maíra – Eu tenho.
Eu – E você brinca de montar?
Esther – Eu brinco de montar.
Eu – Aqui na escola tem um brinquedo parecido. Depois vamos pegar e montar uma casa igual a essa?
André – Isso é um castelo.
Eu – Isso é um castelo ou uma casa?
Esther – Um castelo.
Giuliana – É um castelo de princesa.
Eu – Será que tem uma princesa escondida aqui dentro?
Giuliana – Tem. Eu tenho uma dessa.
[…]

Ainda na mesma roda:
Eu – Deixa eu ver o que é isso. (Ingresso do teatro da Branca de Neve). Você foi ao teatro esse fim de semana?
Nina – Eu também.
Esther – Era o teatro da Branca de Neve.
Rodrigo – Eu foi do Júlio.
Eu – No do Cocoricó3?
Rodrigo – É, do Júlio.
Nina – Eu já vi o do Júlio.
Eu – Igual o Rodrigo?
Nina – É.
Esther – Eu vou no teatro do Cocoricó.
Eu – A Esther está dizendo que foi no teatro da Branca de Neve. Alguém já foi no teatro da Branca de Neve?
Nina – Eu fui.
Manuela – Eu fui.
Eu – “Quem tinha” no teatro? Tinha a Branca de Neve?
Esther – Tinha.
André – Tinha o desenho do Shrek.
Eu – Você assistiu o desenho do Shrek? Esse fim de semana?
André – É, eu vi na minha casa.
[…]
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As crianças dessa idade têm pensamento sincrético, ou seja, “na percepção, no pensamento e na ação, a criança tende a misturar os mais diferentes elementos em uma imagem desarticulada, por força de alguma impressão ocasional” (VYGOTSKY, 2003). A afirmação do André: “Tinha o desenho do Shrek”, inicialmente parece não estabelecer relação com o que estávamos falando. No entanto, ela era pertinente porque aquele era o filme a que ele havia assistido no fim de semana. O mesmo vale para a criança que havia ido ao teatro da Branca de Neve. Cabe ao professor conferir significado às frases soltas, conectando-as com o que está sendo conversado ou registrado no livro, recuperando o fio de pensamento percorrido pela criança. O professor, ao estimular a criança a falar e a ficar atento ao que ela diz, perceberá as relações estabelecidas por ela, conferindo sentido à conversa. Ele assume o papel de mediador e de incentivador da interlocução entre as crianças.

Quando o diário de sala chegou ao fim
Construir o diário de sala com meu grupo, ao longo do ano, fortaleceu minha crença no potencial das crianças que, mesmo muito pequenas, são capazes de falar de suas experiências e de relacioná-las com as dos colegas. Ele não só guarda a memória do grupo, como também revela sua identidade.

(Mariana Isnard Carneiro, pedagoga e professora da escola Grão de Chão, em São Paulo – SP)

1A escola Grão de Chão atende a crianças de 1 a 7 anos, no bairro da Água Branca, em São Paulo (SP).
2Programa infantil caracterizado pelo personagem Garibaldo e sua turma. É veiculado e coproduzido pela TV Cultura de São Paulo (SP) e pela produtora norte-americana Sesame Workshop.
3Série infantil brasileira produzida e exibida pela TV Cultura e pela TV Rá-Tim-Bum cujo personagem principal dos episódios é o menino Júlio.

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“O grupo adora pintar com as mãos e se melecar bastante.”

Quem foi Vygotsky

Lev Semenovitch Vygotsky (1896-1934) nasceu na Bielo-Rússia. Era advogado, médico, psicólogo e doutor em Psicologia da Arte. Alexander Luria e Alexei Leontiev, seus colaboradores, foram os responsáveis pela disseminação dos textos de Vygotsky, muitos deles destruídos na época em que Josef Stálin esteve à frente do governo da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Devido à censura soviética só mais recentemente seus trabalhos foram reconhecidos, inclusive na própria Rússia. Em 1962, seu livro Pensamento e linguagem foi lançado nos Estados Unidos da América e, em 1987, no Brasil, pela Editora Martins Fontes.

(Fonte: A formação social da mente, de L. S. Vygostsky. Editora Martins Fonte, São Paulo, 1988)

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Rotina do Grupinho

Ficha técnica

Grão de Chão Arte Criatividade e Educação Infantil
Endereço: Rua Tanabi, 275 – Água Branca – São Paulo – SP. CEP: 05002-010 – Tel.: (11) 3673-0208 e 3672-5926 – E-mail: graodechao@graodechao.com.br Site: http://www.graodechao.com.br
Diretoras: Paula Antunes Ruggiero, Lucília Helena Franzini e Maria Cecília Franzini
Coordenadora pedagógica: Lucília Helena Franzini
Professora: Mariana Isnard Carneiro
Professoras auxiliares que participaram do projeto: Mariana Mantovani Hidalgo e Roseli Alves da Silva
E-mail: mary3000br@yahoo.com.br

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“Ontem fizemos suco de laranja. Provamos a fruta e a esprememos até virar suco. André, Rodrigo, Daniel, Sue, Matheus e Nina preferiram comer a fruta. Esther, Maíra, Rafael e Giuliana preferiram tomar o suco. Nesse dia Manuela faltou.”

Para saber mais

Livros

  • O Pensamento e a linguagem, de Lev S. Vygotsky. Editora Martins Fontes. Tel.: (11) 3082-8042.
  • A paixão de conhecer o mundo, de Madalena Freire, Editora Paz e Terra. Tel.: (11) 3337-8399.
  • Portfolios bem aproveitados, de Denise Tonello in Revista Avisa lá, no 39, de agosto de 2009, Instituto Avisa lá. Tel.: (11) 3032-5411.
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“O André gosta muito deste livro. Mostra as fotos de todos os amigos, sabe qual é a mão e o pezinho de todos. No final de semana fomos ao
teatro. Adorou o cachorrinho!! Ele falou que gosta muito de pipoca, da cachorrinha da fazenda, do vovô Zé Márcio. O André tá muito feliz no
Grão!! Um beijinho a todos vocês!! Ana”

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